domingo, 28 de fevereiro de 2010

EM BUSCA DA HISTÓRIA PERDIDA


Perdi a memória. Desde que saí do coma, ouço minha mãe (a mulher que estava sempre lá e que me apresentaram como tal) discutindo com os médicos, que dão explicações complicadíssimas, ininteligíveis, sobre as probabilidades de eu vir a recobrar a dita cuja. Em casa, a Mãe tentou me fazer lembrar coisas. Registrei algumas informações (nome, idade, profissão, situação financeira, estado civil) mas pedi-lhe encarecidamente que não me dissesse mais, que esperasse eu lembrar. Afinal, perdi a memória mas não o bom senso: não vou adotar assim de graça a sua versão da minha vida, prefiro ir montando a coisa aos poucos.

Meu único outro pedido foi que não contasse a ninguém do meu estado: não quero que me atribuam atitudes ou palavras que não tenho como checar se são verdadeiras . Também levei um tempo sem participar de eventos sociais: receio encontrar pessoas que detectem meu vazio total. Ontem, no entanto, resolvi ir ao aniversário do que a Mãe diz ser meu Melhor Amigo; em parte porque já rechaçara duas vezes suas tentativas de folhear comigo um álbum de fotos da infância e adolescência, e ela já estava com um ar de "depois-de-tudo-que-fiz-é-assim-que-você-me-trata?"; em parte porque as pessoas podiam desconfiar de tanto sumiço.

Entrei no clube. Passei pelo salão às escuras onde as pessoas se balançavam convulsivamente sob a batuta de um dj enlouquecido e me dirigi às mesas do terraço. Numa delas vários braços me acenaram; eram os meus Melhores Amigos, ou pelo menos os que eu podia reconhecer porque me visitaram no hospital.

Garçons passavam com salgadinhos, bebidas. Me ofereceram uma cerveja. Declinei, pedi um copo d'água, lembrei das recomendações dos médicos, expliquei: "Ainda não estou podendo..." Os Melhores Amigos riram muito: "Demais, cara! Ainda não está podendo! Até parece que algum dia bebeu! É aquela sua idéia de resgatar o gerúndio para acentuar a transitoriedade, né?" Não entendi nada. Um perguntou: "Como é mesmo que você dizia, transitoriedade ou impermanência?" Olhei para a rua. Ainda muito movimento de carros. Disse, distraidamente: "Trânsito!" Acharam maravilhoso. "Genial, cara, trânsito, nem transitoriedade nem impermanência!" O papo ia assim escorrendo sem eira nem beira nem peneira, mas pelo menos ninguém parecia notar nada da minha amnésia. Perguntaram: "E o livro novo, já resolveu o título?" Olhei de novo lá fora, vi um gato, balbuciei: "Gato na Calçada". Julgaram o título fantástico, muito apropriado e sugestivo. (A Mãe já me mostrara o tal livro, mas era muito parecido com essa conversa; não entendi nada, parei na terceira página, um tédio!) No geral, não posso dizer que não tenha sido uma reunião agradável, apenas não sei sobre o que falamos a noite toda. Todos achavam tudo o que cada um dizia maravilhoso, fantástico, genial.

Ao final da festa, já ia pedindo ao porteiro para chamar um táxi quando um Melhor Amigo apontou: "Olha lá, é a Lê! Acho que você não conhece, mas ela mora na sua rua, pode te levar." Chamou-a. Não sei bem se foi o jeito que ela se virou, uma mão na porta, a outra levantada ajeitando os cabelos, ou o olhar que ela me mandou por cima do ombro, que me atingiu em cheio. Só sei que nunca senti aquilo. Duvido que se tivesse sentido esquecesse... Entrei no carro como se de volta ao coma, mas com uma leve dor de barriga: medo de que ela começasse a fazer perguntas que eu não saberia responder. Ainda bem que o percurso não era tão longo, ela se ateve ao básico, que eu já conhecia (nome, idade, estado civil, profissão, etc.). Na despedida, o convite : "Vamos pegar uma praia amanhã?"

Entrei em casa excitadíssimo, fui direto para o computador (essa habilidade não perdi, como a de falar, ler e escrever). Tinha que me preparar para a praia. Listei as perguntas que gostaria de fazer a ela, e que ela provavelmente vai querer me fazer. Catei respostas no google: lembranças de infância, aniversários, escolas, namoros, viagens, livros, restaurantes, músicas. Quando amanheceu já tinha construído toda uma vida para substituir a que me escapara da mente. Com direito a notas rabiscadas em pequenas tiras de papel para "colar", se necessário. Tenho de novo uma história. Para seduzir a Lê. Espero que funcione.


RJ, março 2010
A LENDA DA FOLIÃ CAPENGA



Não conseguia nem fingir que era feliz. A alegria dos outros a irritava; achava tudo farsa, a euforia do Carnaval escondia os problemas de família, trabalho, relações. Ela não tinha como disfarçar, pior não podia estar. Quem mandou namorar homem casado? Com o mesmo papo de "amor" pra cá, " querida" pra lá, com que garantira passar o Carnaval com ela, veio com essa de que não foi possível, pediu perdão, jurou que na Semana Santa fariam a viagem prometida. Nem deu para lhe contar que perdeu o emprego, que ia ter que procurar outro após os feriados. E agora? Não tinha plano B, descartara todas as propostas dos amigos. Uma coisa era certa: não ia aguentar ficar em casa. Sua rua era passagem de blocos quase todos os dias, insuportável aquela algazarra, aquela palhaçada... Anotou os horários, para programar evitá-los.

O bloco de sábado era no final da tarde. Foi visitar a mãe. Mal entrou na casa viu que a irmã estava lá. Clima tenso, como sempre. Logo estavam discutindo, a irmã cobrando uma maior presença dela no cuidado da mãe, dizendo não entender porque ela não vinha morar ali, ela cobrando da irmã que levasse a mãe para morar com ela, já que era casada e tinha uma casa com toda a "infra", por causa dos filhos, etc. A mãe fingia assistir TV e não ouvir a discussão constrangedora. Ela saiu aos prantos. Quando chegou em casa desabou na poltrona da sala. Ainda bem que o bloco já tinha passado, estava tudo calmo, a rua suja mas silenciosa.

Domingo o bloco era logo depois do almoço. Decidiu almoçar em Petrópolis, respirar ar puro. Chegou à Av. Brasil até facilmente, mas antes de pegar a Rio-Petrópolis o carro parou de repente. O tanque estava cheio; o que podia ser? Tentou dar partida várias vezes. Ligou pro mecânico, torceu que atendesse. Deu sorte. Ele ia terminar um "servicinho" e logo a socorreria. Apareceu uma hora depois, examinou, tentou alguma coisa. Nada. De tudo o que ele disse, só ouviu quando falou em rebocar, e "dar uma posição" na sexta. Duas horas depois o reboque chegou, pôde ir para casa. Suspirou aliviada porque o bloco já tinha passado, estava tudo calmo, a rua suja mas silenciosa.

Destinado às crianças, o bloco de segunda era de manhã. Tomou um café rápido e foi para o Aterro do Flamengo. Caminhou devagar, alongando o corpo, apreciando a zoada das maritacas. Sentiu-se mais leve, reconfortada. Na volta, não viu o buraco na rua, pisou de mau jeito, torceu o pé e caiu, batendo o lado numa mureta. A dor nas costelas era lancinante e não conseguia firmar o pé. Alguém a ajudou a levantar e chegar ao seu prédio, o porteiro levou para o apartamento. Não quis hospital, achou que bastava colocar gelo. Improvisou um sanduíche e se estatelou na cama. Pelo menos o bloco já tinha passado, estava tudo calmo, a rua suja mas silenciosa.

No dia seguinte levantou com ajuda da bengala que a vizinha tinha emprestado. Ao se ver no espelho, levou um susto: olhos fundos, rosto emaciado, cabelos desgrenhados. Resolveu acabar com aquilo. Tomou uma chuveirada, ajeitou os cabelos, caprichou na maquilagem. Catou no armário uma minissaia antiga, uma meia arrastão, uma blusa tomara-que-caia, colar e pulseiras coloridos. Fixou o tornozelo com uma tala. Empunhou a bengala e saiu procurando um bloco. Não havia nenhum na sua rua naquele dia. De táxi, achou um quase do outro lado da cidade. Mergulhou na folia. No meio do desfile já tinha esquecido as dores. Agitava a bengala, pulava e cantava.

Até hoje ninguém sabe o que aconteceu depois. Uns dizem que ela continua vagando pelas ruas da cidade, cantando e girando a bengala, com a qual agride quem tenta se aproximar. Outros dizem que ao atravessar a rua para comprar uma garrafa de água foi atropelada por um caminhão. Há também quem diga que ali no bloco mesmo conheceu um cineasta argentino, vive hoje com ele em Buenos Aires e conseguiu enfim ser feliz.


RJ, fevereiro 2010
E NO ENTANTO ACREDITE




Era sempre na pior hora. No meio do banho depois da caminhada matinal, por exemplo. O telefone tocava. Saía quase escorregando no chão molhado, com a toalha agarrada às pressas, e lá vinha:
- A Josefina está?
Ou quando, refestelada no sofá para assistir sua série policial favorita, ia enfim descobrir o assassino:
- Posso falar com a Josefina?
Nos momentos em que batia o lado ruim da solidão atendia correndo, na esperança de uma voz familiar ou amiga:
- Boa noite. A senhora Josefina?
Vontade de mandar a algum lugar distante, de matar ou de morrer. Mas explicava:
- Este telefone já é meu há cinco anos; por favor, não há ninguém aqui com esse nome...
Naquela tarde não deu outra. Tinha acabado de sair, atrasada como sempre, para a consulta médica, bolsa de um lado, saco com os resultados dos exames do outro. Mal fechou a porta ouviu a campainha. Pensou em não atender, mas podia ser cancelamento da consulta, vasculhou o monte de bugigangas da bolsa onde jogara a chave e abriu a porta correndo para o usual:
- Dona Josefina, por favor?
Depois da explicação de rotina, pegou o metrô. Humor estragado, quase recusou quando a mocinha viçosa levantou para ceder o lugar, não lhe deixando esquecer a idade. Sentou sem agradecer.
De repente reparou a mulher sentada a seu lado. Igualzinha a ela: mesma faixa etária, mesmo tipo de roupa, mesmo corte de cabelo, só o tom da tinta um pouco mais escuro. Veio aquela lembrança idiota do anúncio do bonde da infância: "Veja, ilustre passageiro /o belo tipo faceiro / que o senhor tem a seu lado./ E no entanto acredite..."
Para completar, a mulher levava um saco plástico do mesmo tamanho, da mesma cor, do mesmo laboratório, quiçá com os mesmos exames que ela. Sorriram. Comentaram: indo ao médico, as duas; na Praça Saenz Peña, as duas.
Na estação Catete tinham trocado informações sobre os motivos da consulta, os piripaques de cada uma. Na Glória passaram para dicas de cabeleireiro e de dietas. Na Cinelândia chegaram às profissões, uma bióloga, a outra psicóloga, ambas aposentadas. Na Uruguaiana já confidenciavam história de vida, casamento na mesma época, separação mais ou menos pelos mesmos motivos, filhos criados. E assim foram, de estação em estação, se inteirando das grandes semelhanças e das pequenas discrepâncias de suas biografias.
Quando enfim saíram do metrô, a volta à superfície pareceu o fim de um sonho. Ficaram um tempo paradas, sem querer se despedir. Já ia cada uma para seu lado quando ela chamou:
- Ei! Conversamos tanto e eu nem sei o seu nome.
- Jô. E o seu?
- Jô? Só Jô?
A outra riu:
- Não vá espalhar, na verdade é Josefina, mas todo mundo me chama de Jô. Não sei por que minha mãe fez isso comigo.
Riram muito quando ela contou suas desventuras telefônicas, até descobrirem que o número tinha mesmo sido da outra, antes da mudança para Copa, há sete anos.
Naquela noite, quando estava escovando os dentes para se deitar, o telefone tocou. Atendeu com a boca ainda espumando. Surpresa:
- Desculpe, sou eu. A Jô. Não resisti à vontade de ligar, foi legal te conhecer. Que tal tomarmos um café amanhã, está a fim?
A partir daí foi um cafezinho aqui, um cineminha ali, um jantar acolá, não desgrudavam mais. Assunto a perder de vista. Programas, compras, planos de viagens, depressões e alegrias, partilhavam tudo.
Uma noite combinaram ficar na casa dela vendo o filme que descobriram que era o preferido de ambas, Casablanca, degustando queijos e vinhos.
No final do filme, o vinho era tanto e a emoção tamanha que se abraçaram enternecidas. Começaram a se tocar, a se beijar, e logo estavam na cama, degustando uma nova maneira de amar.
Cada vez era mais difícil se separar. Em poucos meses resolveram morar juntas, Jô se mudou para a casa dela.
É com enorme prazer que agora atende sempre o telefone. Não há mais engano. Mesmo quando não é para ela, pode enfim responder, satisfeita, completa:
- Um momentinho que eu vou chamar.




RJ, outubro 2009
COMO ERA GOSTOSO O PÃO FRANCÊS

Hoje tive que ir ao supermercado. Simplesmente não tinha mais nada comível em casa. Adio esse momento até não poder mais. Ironia, pois devia ser um prazer. Antigamente era uma obrigação, a mala do carro ficava cheia de sacolas: quilos disso, dúzias daquilo. Agora, que os filhos já foram viver suas vidas e eu já me aposentei, devia poder curtir só o que gosto, certo? Errado. A questão da comida virou uma verdadeira guerra entre o bem e o mal. Não há uma vez que eu abra a Internet que não receba um monte daqueles e-mails aconselhando todo tipo de cuidado, coisas que a gente sempre comeu e descobre que já era para ter morrido, de tão ruins que são para a saúde; outras que nem sabíamos que existiam e somos informados que não dá para viver sem. E você tem que estar sempre se atualizando, pois uma coisa pode ser indispensável hoje e um veneno amanhã. O maior exemplo é o ovo. Imagino a confusão que deve ser nas granjas: nem as galinhas sabem mais se é para botar ou não. Os médicos são verdadeiros sádicos. As vezes me dá vontade de perguntar se eles seguem o que recomendam. Basta ir fazer um check-up básico e a gente sai com um monte de prescrições e receitas, mesmo que tenha ido ao dermatologista só para perguntar se seria bom tirar aquele sinal que apareceu no ombro esquerdo. No início achei prudente pregar as normas na porta da geladeira: o que posso, o que não posso, o que devo, o que não devo. Até o dia em que eram tantas listas e ímãs que não consegui encontrar a geladeira. Aí tirei tudo, e nem levo mais lista quando vou às compras. Descobri o princípio da coisa: basta você passar a comer e beber só o que não gosta, e evitar o que gosta. É óbvio que todos os defeitos que o médico detecta no seu organismo se devem aos hábitos que você cultivou na vida, então há que reverter o processo.

Assim, fui enchendo o carrinho com todas as coisas insossas que encontrei, percorrendo as prateleiras preguiçosamente. Ao final, me dirigi orgulhosa ao caixa, certa de que seria aprovada em qualquer vistoria. De repente, ao passar pela seção de pães, uma moça de avental colocou, quase no meu caminho, uma enorme cesta cheia de pãezinhos franceses, recém saídos do forno. O cheiro era ensurdecedor. “Cacetinhos” - murmurei, lembrando de Salvador. A moça viu meu ar desolado. Deve ter achado que pisou no meu pé, ou talvez intuiu mesmo a maldade maior que acabara de me infligir. Pediu timidamente desculpas. Eu ali, respirando fundo, apoiada no carrinho, me deixava levar pelo cheiro para um mundo tão antigo que julgava perdido na memória: mamãe passando manteiga no pão, aquele cheirinho misturado com o da mão dela enquanto mexia o café, eu já salivando com o nariz pregado na mesa. Ou pedindo para um de nós comprar “duas bisnagas”, e todo mundo queria ir. Ela dava o dinheiro e avisava: “Mas é para o lanche, não é para comer no caminho não, hein?”. Falava por falar. Sabia que a bisnaga já chegaria sem o bico, que a parte boa era voltar comendo a ponta quentinha. Olhei o pão integral acomodado imponente no meu carrinho, cheio de avisos de coisas corretas na embalagem: fibras, cereais, sem gluten, sem gordura trans, etc. Sondei em volta: ninguém estava vendo. Surrupiei dois cacetinhos e joguei no carrinho. Mas aí me lembrei também da merenda, o sanduíche que mamãe fazia com mortadela. Voltei ao balcão de frios, pesquei um pacote de mortadela – pecar por pouco, pecar por muito.

Vim pela rua meio desconfiada, olhando para os lados, com medo de ser parada pela polícia; imaginava o defensor da lei e dos bons costumes me interpelando: “O que é que a senhora está levando aí?” Quando já ia chegando, quase tropecei em dois meninos dormindo na calçada; desses meninos que tem gente que chama de “menor”, mas que eu acho que são crianças também. Dormiam tão quietos que me preocupei, parei para ver se respiravam. Um devia ter uns doze anos, o outro era mais novo. Dava para ver as perninhas magras saindo da coberta. Olhei para o céu: “Tá bom, já entendi, cara!” Tirei a sacola com os dois pãezinhos e o pacote de mortadela e ajeitei ao lado deles. O caçula acordou; deve ter sido pelo cheiro. Mandei um beijo com a mão e fui embora. Estava satisfeita, pronta para o meu pão integral. Foi o melhor pão francês que já não comi na vida. Inda mais com o sorriso lindo que o menino me deu de troco.


RJ, agosto 2009
A HORA E A VEZ DE A.M.

Não é a primeira vez que participo de um grupo em que se propõe que se liste os 10 melhores filmes, na opinião de cada um. Não é tampouco a primeira vez que omito na minha lista um filme que teve um papel fundamental na minha vida: “A hora e a vez de Augusto Matraga”. A omissão não é gratuita. Não se trata de desmerecer a beleza ou a importância do filme. A questão é que eu simplesmente não o assisti.

Estava eu fazendo dois meses de cursinho pré-vestibular (depois de muitos cálculos foi o que deu para pagar), e um colega começou a me paquerar: me dava carona após a aula, convidava para um chopinho e coisa e tal. Eu nunca tinha namorado, mas os hormônios adormecidos pelo intelecto se impuseram, e um dia acabei aceitando acompanhá-lo até o pequeno apartamento que improvisara, depois de um desentendimento com os pais, em Santa Teresa.

Era um rapaz razoavelmente rico, na minha avaliação, pois carro e apartamento eram sinais de uma vida bem diferente da minha. Nasci pobre, e minha mãe tinha uma série de preceitos que tínhamos de seguir por isso: tínhamos que ser honestos (“pobre vai para a cadeia, rico não”); trabalhar muito sem descuidar do estudo (“ter uma profissão, um emprego com estabilidade”); aliás, tirar sempre as notas mais altas (“rico não precisa, tem herança”); não ver tevê na casa dos outros (para não saberem que não tínhamos); não ler jornal (“tem muita coisa imprópria”) nem gibi, só livros; andar sempre arrumado (ela mesma varava a noite costurando, cerzindo, lavando e engomando as nossas roupas); falar direito (nem gíria, nem palavrão, nem apelido).

Havia ainda os preceitos específicos por sexo: meus irmãos não podiam nos bater, o que era ótimo: quando eu brigava com um, ele não podia revidar (“homem não bate em mulher, nem com uma rosa”); já as filhas mulheres (minha irmã e eu) não podiam ser “moças fáceis”, nem ficar pensando em namoro e casamento, pois “mulher não pode depender de homem, tem que ter uma carreira”. Assim, eu via minhas coleguinhas de ginásio trocando confidências e segredinhos, rindo maliciosamente, enquanto eu vivia mergulhada nos livros.

Eu tinha decidido enfim por uma profissão: ia estudar Sociologia. O motivo era tentar entender essa dicotomia entre ricos e pobres que matizava toda a minha vida, e que eu sabia que não era culpa nossa (afinal, fazíamos tudo certinho), nem de Deus (a essa altura não mais que uma sublime ausência). Achei que só podia ser uma questão social, e me dispus a decifrá-la.

Então ali estava eu , de repente, no apartamento do colega, que foi logo se pondo à vontade, tirando sapato, camisa, sentando no colchão que fazia as vezes de sofá e cama, cheio de almofadas, no chão. Ficamos conversando, ouvindo música, descobrindo muita coisa em comum, e eu também fui ficando à vontade. Logo estávamos nus, trocando mil carícias. Tudo muito natural e gostoso, eu enfim me tornando mulher.

Sabia que tinha cometido um pecado mortal, pelo menos para minha mãe; ele me deixou em casa (na esquina, pois também não se devia deixar ver que morávamos num prédio de conjugados), mas eu tinha perdido totalmente noção da hora. Minha mãe me esperava na portaria, e, ao me ver, mudou o ar de preocupação para reprovação. Perguntou onde eu estivera, respondi rapidamente, pedindo desculpas, que tinha ido ao cinema com algumas colegas.

-Que filme? - ela perguntou, brava .

-“ A hora e a vez de Augusto Matraga” - foi o que me ocorreu; tinha ouvido alguém comentar sobre esse filme, e tinha certeza que mamãe não saberia o que era – não me lembro de tê-la visto ir ao cinema, mas mesmo que fosse, não seria para ver filmes nacionais, pois, segundo ela, “ antes era só pornografia, agora só mostram miséria” . Ela certamente assinaria embaixo a declaração, depois famosa, do Joãozinho Trinta, de que “pobre não gosta de miséria; quem gosta de miséria é intelectual”.

Já me deparei, depois, com anúncios desse filme em algumas mostras de cinema brasileiro, mas nunca quis assistir. Desconheço o diretor, os atores, o enredo. Minha impressão é que, se o vir, estrago o prazer da minha maior mentira. No meu imaginário, também recuperaria a virgindade, da qual custei tanto para me livrar.

RJ, julho 2009
ENTRE A CERVEJA E O CHOCOLATE

“Dentro de mim há dois cães; um deles é cruel e mau; o outro muito bom. Os dois estão sempre brigando. O que ganha é aquele que eu alimento mais frequentemente.” - provérbio dos índios norteamericanos

Levantou-se e caminhou até a frente, sentou na cadeira ao lado da mesa do coordenador, como viu os outros fazerem. As pernas bambas denunciavam a presença das três inimigas: vergonha, medo e culpa. Achou que não ia conseguir. Mesmo assim, abriu a boca. A voz enfim saiu:
-Meu nome é Ana Lúcia. Eu ... sou... al...alcoólatra.
O coro de vozes deu segurança; parecia uma rede de proteção:
-Oi, Ana Lúcia!
Sentiu que as três inimigas batiam em retirada. Depois de uma grande pausa, continuou:
-Eu não sei bem... quer dizer, é a primeira vez... ou melhor, não é a primeira vez que eu venho aqui... é a primeira vez que consigo falar... meu nome... não sei se sou eu mesma... quando acordo no dia seguinte não me lembro... quando as pessoas me contam eu não acredito... que tinha feito aquilo...
Silêncio. Com todas aquelas reticências, ninguém tentou falar, interromper, apartear, como sói acontecer em tudo que é reunião. Ana Lúcia se surpreendeu. Todos quietos olhando para ela como se estivesse fazendo revelações importantíssimas. Tomou alento:
-Das outras vezes eu fiquei ouvindo vocês, e tem muita coisa parecida... então acho que eu posso... quer dizer, acho que eu quero...
Queria mesmo era terminar a brilhante falação. Procurou ajuda pela sala. Viu a foto do Bill, e, ao lado, a tabuleta com um dos refrões : “Se você quer beber, o problema é seu; se você quer parar de beber, o problema é nosso”. Inspirou-se:
-Acho que eu quero... quer dizer, eu... quero parar de beber.
Bateu na mesa, como vira os outros fazerem, despediu-se:
-Mais vinte e quatro horas para todos!
Durante o resto da reunião mal ouviu o que diziam. Notou que às vezes se referiam a ela, se diziam felizes com a nova “irmã”, desejavam força, davam conselho.
Em sua mente, passavam cenas que devia ter contado, ou que sabia que um dia ia contar: a noite em que a polícia a parou por dirigir em zigue-zague; a briga com a família no Natal, ela cuspindo “verdades” para os pais e os irmãos (e para todos os vizinhos que quisessem ouvir); o aniversário em que “capotou” antes dos amigos chegarem, dormiu a festa toda; a quarta-feira de cinzas em que acordou com um desconhecido ao lado, na cama, sem saber o que rolara...
Quando a reunião acabou já era noitinha, mas o calorão continuava. Entrou nas Americanas para aproveitar o ar condicionado. Comprou guloseimas, como ensinaram: “o corpo vai precisar de açúcar, para substituir o álcool; nem pense em dieta agora”. Tudo o que gostava: chocolate, pão de mel, caramelos; e um livro que há muito queria ler. Ao chegar em casa, foi direto para o chuveiro; pediu perdão ao meio ambiente e deixou a água do planeta se desperdiçar sobre ela.
Só resolveu sair quando ouviu o telefone. Não atendeu. Ficou esperando, ainda enrolada numa toalha, enxugando os cabelos com outra. Deixou entrar a secretária eletrônica. Logo, a voz da Mariana, a melhor amiga:
-Ô muié! Onde estás? Assim que chegar me liga, tá? Estamos te esperando; imagina o quê: vai ter uma festaça na casa da Glorinha, lá no Recreio. Vem para cá para ir com a gente. Sabe quem vai estar na festa? O Chico! E eu soube que ele está sozinho, despachou aquela bruaca... Já se animou, né? Voa para cá, amiga! E traz o biquine, que a festa vai ser na piscina! Demais, né? Nesse calor dos infernos. Vamos refrescar legal. Por dentro e por fora. A cerva aqui está geladíssima.
Podia ouvir as risadas e a música do outro lado; já estavam se preparando. Ao lado do telefone estava o cartão que trouxera, com a oração da serenidade.
O tempo parou. Ficou suspenso, igual à mão dela sobre o fone, aguardando a decisão.

RJ, junho 2009
CADÊ MEU PAI ?


Entrei correndo na capela, preocupada; atrasada, como sempre. Culpa do taxista, que não achava a entrada. Vi que o corpo já estava ali, me aproximei. Acariciei, sobre o véu de proteção, os cabelos brancos. “Meu pai”, sussurrei, apreciando o trabalho de quem o preparou: no final não comia, estava com as faces muito encovadas, devem ter feito algum preenchimento. Como ficou diferente, sem a vivacidade dos olhos azuis que davam um brilho especial ao seu sorriso zombeteiro! Um olhar de criança travessa, uma piada sempre pronta, debochando de qualquer convenção, preceito moral ou ético.

Para não estragar a lembrança que quero guardar dele, vivo e gozador, me afastei do corpo e fui sentar numa das cadeiras enfileiradas, acomodada no pensamento-chavão: “parece dormir”... Olhei em volta e não reconheci ninguém. Estranhei tantas pessoas idosas, pois ele estava sempre cercado de gente jovem, amigas das filhas do segundo casamento, que têm idade para ser minhas filhas. Imaginei que deviam ser os parentes dele da Piedade; alguém tinha ficado encarregado de avisar; eu não os via há décadas, não identificava ninguém.

Mais estranho era minhas irmãs não terem chegado ainda; tínhamos combinado de escolher juntas uma coroa de flores. Vi que alguma deve ter vindo e cansado de esperar, pois a coroa já estava lá, com “saudades eternas dos familiares e amigos”. Provavelmente a Joana; providenciou a coroa e foi buscar a filha.

Pensei: “agora sou a mais velha da família” (a "bola da vez”?)... Fiquei repassando na memória algumas proezas do papai, pequenos acontecimentos do cotidiano, afastando as cenas dos últimos dias, o sofrimento, nossas dúvidas e ansiedades, o cansaço dos revezamentos no hospital, o estresse das decisões costumeiras: “pediu coca-cola, dou ou não?”; “a médica acha melhor alimentar por sonda, deixamos ou não?”; e por aí vai.

De repente uma senhora que estava sentada do outro lado se aproximou de mim. Devia ter por volta de 80 anos, muito arrumada, blusa de seda, saia quase nas canelas, antiquada mas elegante. Tinha nas mãos um lencinho bordado, com o qual de vez em quando enxugava uma lágrima furtiva. Muito magra, cabelos brancos penteados para trás, parecia nervosa, mas caminhava empertigada, como se desfilasse.

- E a senhora, quem é? - me perguntou, muito baixinho, com um jeito meigo.

- Sou Marina, a filha dele. - respondi, também baixinho.

- Como? Filha dele? O que é isso? O que está acontecendo? - ficou agitada, levantou a voz, parecia que ia ter um chilique.

Outra senhora se levantou, acercou-se, amparou-a pelos ombros, perguntou de novo:

- Quem é a senhora?

- Marina, a filha mais velha. - repeti.

- Filha do Darcy? - ela arregalou os olhos.

- Que Darcy? - perguntei.

Ela apontou para o caixão. Então me dei conta do terrível equívoco:

- Esta não é a capela 1?

- Sim.

- Do cemitério da Ordem Terceira da Penitência?

- Não! Do cemitério da Ordem do Carmo!

- Me desculpem! Errei de cemitério! - saí correndo, para não ter que completar: “ e de morto!”

Cheguei esbaforida ao cemitério certo. De longe já vi minhas irmãs me procurando, sem entender meu atraso. Pelo menos pudemos escolher juntas a coroa, embora no final tenha ficado quase igual à outra. Quando contei minha desventura recente, rimos muito: papai teria adorado essa história. Em certos momentos da vida ( e da morte) somos todos mesmo muito parecidos.



RJ, maio 2009
RESSURREIÇÃO




Recobrou a consciência aos poucos. Mesmo sem abrir os olhos, percebeu, pelos sons e cheiros, que estava no hospital. Por um breve momento, teve a ilusão de que morrera e de que talvez tivesse voltado em outro corpo, como uma de suas patroas, dona Nininha, dizia que acontece. Mas não. Começou a lembrar de tudo, viu que infelizmente ainda era ela mesma.

Já devia ser domingo. Domingo de Páscoa. Tinha acontecido na véspera. Voltava da faxina do sábado, na casa da dona Zilda, feliz porque ganhara um ovo grande, ia fazer uma surpresa para o filho. Ao pé do morro, enquanto tomava fôlego para a subida, reparou o rapaz elegante entrar com pressa no carrão de luxo. Parecia um ator da novela. "O que estaria fazendo aqui?" - pensou. Arrancou numa disparada, quase passou por cima dela. Não a viu, nem parou para socorrer, quando ela caiu. Não sabe quanto tempo ficou ali: alguém deve ter achado e levado para o hospital.

Ouviu a voz da filha lá fora, tentando entrar. Uma voz autoritária dizia que não podia, só na hora da visita, só se tivesse mais de 65. Bem que parecia, embora não passasse dos 40. A vida toda lhe veio à memória, os episódios mais importantes. O casamento, lá no interior, ainda menina; o dia em que o marido lhe disse para arrumar as coisas, que iam para o Sul, “sair dessa miséria”, sem pedir opinião, como sempre, ela já buchuda. A chegada ao Rio, o barraco, tão difícil de manter decente. Os partos: Josué, Mateus, que morreu antes de completar um ano, e Madalena. Essa , quando nasceu, ela já estava sozinha, o homem tinha sumido no mundo.

Então era isso: ia morrer de novo. Esse negócio de a vida passar como num filme é o que dona Nininha também dizia que acontece quando se morre. Não ficou triste, sentiu até um certo alívio. Só lamentou a tristeza que causaria aos filhos, mas sabia que ia passar logo, morte de pai não é como a de filho, que fere para sempre.

Pensou neles. Tanto sacrifício fizera para criar e deram naquilo: Madalena mal fez 16, nem casou e já está de barriga. Perguntara de quem, e tivera que ouvir : “Acho que é do Denilson”. Queria poder aconselhar que tirasse, mas era pecado mortal; calara-se. Bastava a dor daquele “acho”. Afinal, tem gente que diz que onde comem dois comem três, o que não é bem verdade... Josué largou a escola cedo, só queria saber de bola e boteco. Ano passado, fez a besteira maior: um dia na praia, com os amigos, viu a bolsa da mulher “dando mole”, como explicou, pegaram ele. Por vinte reais! Provavelmente era dinheiro para farrear; disse que era para lhe comprar o presente do dia das mães. Não o reconheceu quando o viu na delegacia, a cara inchada, deformada de tanto apanhar. Os guardas disseram que foi o povo na praia; que queriam linchar. Fingiu que acreditou. E as visitas, agora semanais, que tortura! Passar pela revista, humilhação, vergonha. Sua vida: de segunda a sábado limpando sujeira dos outros, domingo a viagem a Bangu...

Conseguiu levantar a mão direita, ainda presa no tubo do soro, levou-a ao pescoço. Com as forças que lhe restavam, apertou o crucifixo que a mãe lhe dera na despedida, há tanto tempo: “pra te proteger, filha”, dissera. Vontade de encontrar a mãe de novo, reclamar: “ protegeu não, mãinha”. Mas achou que enfim entendia o homem na cruz: teve a chance de voltar mas não quis ficar. Fez o mesmo. Nem esperou o terceiro dia. Se entregou. Subiu ao céu.


RJ, abril 2009
TEMPESTADE SOB O EQUADOR


Entrou no quarto do hotel já tirando a gravata, o terno, soltando os cabelos. No chuveiro, cantarolou uma música do Elvis. Colocou uma bermuda estampada que trouxera do Havaí, a camiseta vermelha do seu time de vôlei em Stanford; estreou as havaianas, apreciou o resultado no espelho. Começou a treinar o português: “Chega de business, agora ser turista”. Tinha vindo para a reunião da subsidiária brasileira da empresa, não ia perder essa chance de curtir o Rio de Janeiro, sonho acalentado desde criança.

Passeou pelo jardim do antigo palácio presidencial, quase em frente ao hotel. Subiu para ver as coisas do presidente que se suicidou - revólver, pijama furado - novidades para ele, pois em seu país presidentes não se suicidam, são assassinados. Encantou-se com o museu do folclore. Quanta coisa diferente! Queria conhecer todos aqueles lugares, ver de onde vinha artesanato tão variado.

Quando saiu, o susto: o céu de repente desabou, o mundo virou de cabeça para baixo, parecia ter entrado num redemoinho de tempo e espaço. As pessoas correndo; um senhor tentando manter na cabeça o boné da polícia de NY (NYPD); um menino com a camisa do Barcelona patinando nas poças; vendedores de guarda-chuva aparecendo em cada esquina, sob cada marquise. “Where do they come from?”

Pensou em ajudar, mas não precisavam: muitos riam, alguns xingavam, provavelmente culpando o governo ou a má-sorte. Notou uma aglomeração no bar em frente, foi buscar refúgio lá. Na tevê, um jogo do time deles, a julgar pelas camisas, todas listradas de vermelho e preto. Cada um que entrava, mesmo que só para se proteger, como ele, começava logo a gritar, torcer, gesticular.

Pôs-se a imitar os nativos, e imediatamente se enturmou. A algazarra o envolvia como a colcha de retalhos da avó, o aquecia. Pediu uma “caipirinha” no seu melhor português, depois já estava partilhando cerveja com todo mundo; o copo sempre cheio, mesmo que não pedisse. Aprendeu rápido várias expressões idiomáticas: “Juiz ladrão!” “ Filho da puta!” “Porra!” “Caralho!” (Mastigando amendoim nem se notava o sotaque...)

No final do jogo, a chuva tinha amansado. Um homem lindo, que ele disfarçadamente observava desde o primeiro gol, embevecido com os meneios e sorrisos, deu-lhe um tapa nas costas:

- Camisa maneira, bro!

- O seu também, bro!

- Quer trocar? (e foi tirando a camisa, exibindo parte do corpo escultural, se é que se fazem esculturas em ébano).

Superou a vergonha de mostrar o torso sem cor, embora também musculoso,tirou a camisa , vestiu a do outro. Suspirou ao sentir o cheiro forte. Quando saíram do bar, estavam íntimos, se escorando um no outro, cantando ritmadamente “Men-go! Men-go!”

Foram para um hotel na Mem de Sá, que o outro sugeriu. Nem falou do hotel onde estava. “Afinal, ser gringo e viado mas não ser burro”, pensou (já estava pensando em português). Na porta, lembrou quando o comandante do avião, no meio da viagem, avisou que estavam cruzando a linha do Equador. Deu uma gostosa gargalhada, e berrou:

- Agora eu cruzar Equador!


RJ, março 2009
ATROPELOS DA VIDA



Zé Carlos já está postado à porta do quarto, caneca na mão. Sábado, constato, pelo bermudão que tenta conter a barriga saliente. O homem é um calendário ambulante: terno durante a semana, pela gravata sei o dia, roupa esporte fino para o almoço com a mãe no domingo.

- Acordou, querida? Quer um café? As crianças querem ir para a piscina no Jockey. Vamos?

Me desvencilho do sorrisinho obsequioso na cara redonda, do ar satisfeito de quem está prestes a ganhar a medalha de marido e pai do ano. Procuro na bagunça da cabeça qual foi a desculpa de ontem: “esticada” com o pessoal da academia, que uma ia viajar.

- Vai indo, encontro vocês depois, acho que passei um pouco da conta ontem.

A porta fecha atrás deles, respiro aliviada. Tinha sido tão bom ontem, há tempos rolava aquele clima com o professor de pilates, cada vez que ele vinha corrigir uma postura as mãos demoravam mais, eu já pronta para a cantada barata:”Que tal alongar um pouco mais depois?”

Fomos no meu carro, para um motel na Dutra. Perdi a conta das horas e dos gozos, delícia sentir sobre mim aquele corpo sarado, a pele lisa e elástica, segurar aquela bunda durinha e bem torneada. Uma das melhores das transas a que eu recorro de vez em quando para variar do sexo insosso com o Zé, hoje limitado a umas trepadas eventuais, meio que para “cumprir tabela”. Meu jeito de manter a estabilidade do casamento, que, afinal, não pode suprir tudo.

O programa teria sido perfeito, não fosse o incidente na volta. Logo na via de acesso à Dutra, um baque, um solavanco. Já imaginava a explicação se tivesse algum dano na lataria. O professor se alarmou:

- Pára, pára! Acho que atropelamos alguém!

- Nem pensar! Deve ter sido uma pedra, no máximo um cachorro, não posso parar aqui, imagine se alguém me vê!

Mas ele não se acalmava, olhava no retrovisor e depois para mim, aquele olhar indignado de jovem que ainda se revolta com as injustiças do mundo: “Deixa eu saltar!”

Deixei-o lá. Fazer o quê? Não deve ter acontecido nada. Folheio o jornal: nada. Também não sei se um atropelamento em Nova Iguaçu mereceria notícia. Melhor esquecer. Mudar de academia, com certeza. Tocar a vida.

Preciso me aprumar, ir encontrar o maridão e as crianças. Outro café, uma ducha. Vou a pé, a caminhada ajuda a acabar de acordar. Ontem foi ontem. Acabou.

Na esquina, um rebuliço: a moça dando ré para sair da vaga esbarrou numa velhinha, que perdeu o equilíbrio. Sai do carro, levanta a velhinha, pede desculpas, quer levá-la a algum lugar, a velhinha diz que não foi nada, só arranhão no joelho, a outra insiste. Tudo o que eu não fiz. E o que eu fiz? Não vou saber nunca.

Tento passar pelo grupinho de curiosos que já se formou para assistir a cena. Só quero esquecer. “Dá licença?”

RJ, novembro 2008
ONOMATOPÉIA



A idéia veio naquele papo com Ary. Estavam embolados na rede do terraço, na cobertura luxuosa de Lisa. Tinham passado o dia bebemorando os sessenta anos. Nasceram no mesmo dia, se diziam gêmeos idênticos, apesar de algumas falhas: famílias e cidades diferentes, e o pior, ele com o sexo trocado. Erros divinos, desses que os humanos vivem tendo que endireitar, aceitando ou reclamando, e que Ary listava para cobrar quando e se chegasse lá em cima, no juízo final, ou no “fim da picada”, como ele chamava.

Começaram com a cervejada na praia, brincando de bife à milanesa, rolando nas areias de Ipanema diante dos olhares de censura de senhores circunspectos, jovens yuppies e famílias com crianças e baldinhos. No almoço, regaram a feijoada com caipirosca, o que exigiu uma pequena pausa. Depois, uísque ao entardecer, aplaudindo a retirada pomposa do sol.. Cerveja de novo na roda de samba na Lapa.

Tinham chegado agora à fase do "dry martini" – de confidências e grandes sacações sobre a história da humanidade e a vida – já que Buñuel uma vez disse que era quando bebia dry martini que tinha seus insights mais brilhantes. Tudo tinha explicação, motivo. Se não sabiam inventavam, afinal não é isso que diferencia a espécie humana das outras?

Ary saiu da rede, depois de algumas tentativas desajeitadas, quase derrubando Lisa. Alisou a barriga exibindo o corpo meio balofo, pegou os copos para reabastecer:

- Temos que nos preparar para mais essa burrada divina, querida. Doze lustros! A partir de hoje somos legalmente idosos. E o cara não planejou direito, como sempre. Tudo caindo, pele, peito, pau, bunda e cabelo. O tesão não devia cair junto? Mas não, continua lá! E nós é que temos que dar um jeito. Plástica e viagra, é tudo paliativo, pô! Haja criatividade!

Quando voltou, Lisa, deitada com a cabeça nos braços cruzados atrás, abriu o coração:

- Quer saber, maninho? Tem duas coisas que eu sempre quis fazer e nunca consegui. Não quero encerrar o expediente aqui na Terra sem realizar, só não sei como. Uma é mergulhar de cabeça. Toda a vida tive que aturar essa gente que levanta os braços, se debruça, empina a bunda e salta, em mar, rio ou piscina. Que inveja! Você nem pode imaginar o que já passei, humilhação de agachar para furar a onda, ou pular de pé, às vezes até tapando o nariz!

- Houston! – exclamou Ary. We have a problem! Não tenho como resolver isso, jamais consegui também, mas não me gerava angústia. Por que você nunca me contou? Viver esse drama sozinha! Podia ter partilhado, eu podia ao menos consolar. Alegria partilhada é dupla alegria, mas dor partilhada é meia dor, querida! E a outra coisa? Algo que eu possa ajudar, please!

- A outra é mais complicada ainda. É uma relação sadô. Já curti muito em fantasia, mas nunca tive coragem na vida real. Como é que eu ia dizer pro cara “Me dá porrada”? E depois, como é que ia encarar? E se desse certo, gostasse? Ia passar o resto da vida apanhando? Só transei com gente normal, ou pelo menos que pensa que é normal. Todo esse lance de misturar sexo com afeto, amor, respeito até. Nunca deu para extravasar!

Ary saltitou de alegria:

- A-há! Essa eu tenho solução!

- Você? - Lisa se espantou. Você faria isso por mim?

- Eu, não. Deus me livre! Esse negócio de relação hetero tô fora. Me dá nojo só de pensar. Mas sei de um jeito. Olha só: como é que você acha que eu estou me virando depois da morte do Mauro? Depois de quase quatro lustros de casamento com aquele homem maravilhoso, pensei que nunca mais ia querer ninguém, ia pendurar as sapatilhas. Mas a vontade voltou, teimosa. Fazer o quê? Dar uma de bicha velha, catando homem em bar, boite? Nem pensar! Não só pelo risco, pois viver é perigoso mesmo, mas, por mais que eu tente me iludir, sei que o bofe estaria a fim é do dinheiro, prestígio, conforto. Interesse por esta carcaça velha? Difícil! Então vou direto ao ponto. Pago e os dois têm o que querem. Semana passada pesquei um na interrede, lindo, parece um daqueles Baldwin, nunca sei se é Adam, Alan ou Alec. O mais novinho. Um pitéu! Faz o que você quiser. Maior competência. E discrição. Recomendo!

- Sei não, dá um pouco de medo. Muito fora da minha linha. E tenho essa tendência compulsiva... E se vira vício? – Lisa hesitou.

- Atenção! Legalmente idosa, dear! E o que é a velhice sem vícios? Melhor morrer de medo que de tédio! Não se esqueça que o que se leva dessa vida é a pica que se leva.

Depois dessa conversa inspiradora, Lisa passou uma semana tentando decidir. Tinha posto o cartão com o número de telefone do cover de Baldwin junto ao do médico. Olhava para um e para o outro alternadamente, ponderava. Tinha que marcar o início da quimio. Isso não contara ao Ary, a ninguém. O diagnóstico recém recebido: linfoma. Não queria partilhar. Não queria assistir aos esforços do amigo para adaptar algum ditado ou provérbio que desse conta. Ou suportar os olhares de pena e medo que cercam as pessoas nessa situação.

No final da semana já tinha optado. Não seguiu a recomendação de Ary de marcar num motel. Esperou o rapaz em casa mesmo. Tomou umas três doses de uísque à cowboy, para não deixar o bom senso atrapalhar, ligou o rádio para abafar qualquer ruído.

Quando abriu a porta, viu que o garoto era mesmo uma graça, embora nem de longe um Baldwin. Espanou rápido uma idéia tipo “podia-ser-meu-neto”. Ele foi entrando desengonçado, passo ensaiado de malandro, todo blasé. Ao ouvir o que ela queria, comentou apenas:

- Nesses casos tem que ter uma palavra-chave pra parar. Dizer que não ou pedir não vale. Fui parar uma vez e a pessoa ficou pê da vida.. Era só reação instintiva.

Lisa falou a primeira palavra que lhe ocorreu:

- Onomatopéia!

- Que diabo é isso, mulher?

- Precisa saber o que é?

Ele não respondeu, deu de ombros, começou a sessão.

Lisa não soltou um gemido que não fosse de prazer, um ai que não fosse de tesão. Em nenhum momento pensou sequer na palavra-chave. Virada de um lado para o outro, penetrada de todas as formas, em posições que só vira em filme, mordida, espancada, chicoteada, nem em seus devaneios masturbatórios gozara tanto. Especialmente quando ele a amarrava, imobilizava. Volúpia de se entregar passivamente à impotência que a gente cansa de tentar combater na vida. Orgasmos pelo corpo todo, ora em seqüência, ora ao mesmo tempo. Clitóricos, anais e vaginais. Físicos, mentais e espirituais. Assombrava-se com a intensidade daquilo, a existência levada ao extremo,o apogeu dos instintos, Eros e Tanatos de mãos dadas.

O jovem garanhão tinha tudo no lugar, no tempo e na medida certos. Agilidade de felino, força de urso. Principalmente o principal, nem fino nem grosso, nem grande nem pequeno, duro o tempo todo. Um cartão postal. Quando o tempo acabou, Lisa chegou a considerar pedir uma prorrogação. Mas temeu morrer ali na mão dele, encrencar a vida do rapaz.

Esperou-o tomar banho, se vestir. Pagou o combinado. Depois que ele saiu entrou no chuveiro, levou um tempão deixando a água morna acariciar seu corpo. Passava as mãos nos hematomas, nos seios, se tocava toda, chupava os dedos molhados, gozando ainda. Desligou então o aquecedor, uma ducha fria cortou o barato, entorpeceu o corpo. Caiu na real. De que tivera medo, afinal? Podia ter experimentado antes, não tinha a menor chance de viciar. Parecia alegria de porre, que depois deixa a pessoa mais triste. No caso, um delírio orgiástico que a deixava mais insatisfeita que antes. Com um leve sabor de ressaca na boca, se deu conta de que essa de buscar prazer na dor não era de fato sua praia. Não mais. Teve certeza do próximo passo.

Vestiu um conjunto de moletom. Catou todo o lixo da casa, picou os resultados dos exames, os laudos, os cartões com os telefones, despejou tudo na lixeira do prédio. Arrumou uma pasta de documentos em cima da mesa da sala, deixou sobre ela um bilhete.

O rádio continuava ligado, uma estação que nunca tinha ouvido, uma seleção musical estapafúrdia. De repente começou um pout-pourri de trilhas de cinema. Achou graça quando entrou “Luzes da Ribalta”. Gostou da sincronia. Tentou se lembrar da versão em português, cantarolou: “Vidas que se acabam a sorrir, luzes que se apagam, nada mais”. Ou seria o contrário? Foi ao terraço, sentou no parapeito. Não tinha uma luz no céu, mas lá embaixo era uma festa. “Um rio de luzes” – pensou, apreciando o movimento dos faróis dos carros. Bateu palmas para a breguice da imagem.

Tinha que acertar de primeira. Como na vida, não tem ensaio. Levantou os braços, gritou bem alto: “ONOMATOPÉIA!” e se atirou de cabeça. Um mergulho perfeito.




RJ, outubro 2008
CIRANDA



Sarita pôs a poltrona e o corpo na posição vertical para o pouso em João Pessoa. O vôo até que não fora ruim, o serviço de bordo na classe executiva até satisfatório. Nada que compensasse, no entanto, a irritação pelo atraso no aeroporto e pelo absurdo de ter que suportar qualquer desconforto, não para a anual viagem à Europa ou aos States, mas para esse fim de mundo onde o filho viera se enfurnar. Dobrou o blaser de linho cuidadosamente, tirou o espelhinho da bolsa para retocar a maquilagem e mascarar a contrariedade – providência aliás supérflua, pois já há algum tempo qualquer expressão era devidamente apagada de seu rosto por sucessivas cirurgias, liftings e preenchimentos. Mesmo assim, julgou camuflar com rápidas pinceladas de blush o ressentimento com o último caso do marido, cobrir com uma camada de brilho nos lábios a raiva das amigas que souberam antes e não contaram, arrumar com leve escovada nas sobrancelhas os aborrecimentos com os empregados, esconder com um toque no penteado a insatisfação com o serviço do decorador.

No saguão do aeroporto viu o filho que a buscava com o olhar. Reparou a roupa modesta, amarrotada, o cabelo mal cortado, a barba por fazer. Suspirou com a lembrança das expectativas que tivera, de vê-lo no Fórum ou na ONU, juiz ou diplomata, quando acabou a faculdade de Direito e casou com uma médica também recém-formada. Nunca pensou que tomaria esse rumo, de se mandar para o interior. Provavelmente influência “dela”, que provavelmente não conseguira emprego nos grandes centros, provavelmente por incompetência..

O filho a recebeu com um sorriso largo, estendeu os braços. “Fez boa viagem, mãe?” Esquivou-se do abraço, entretendo-se com a bolsa, o blaser; respondeu o menos secamente que pôde. “Razoável, meu bem.” Estava decidida a ser paciente, não entrar em conflito ou polêmica. Já fazia três anos que a chamavam e agora que finalmente acedera ao convite ia agüentar tudo estoicamente, afinal que sacrifícios não se faz por um filho? Ignorou a sugestão de pegarem o ônibus que saía dali a meia hora. Já tinha tratado o carro. Ele pegou a mala e a acompanhou ao guichê da locadora. Sarita agradeceu mentalmente ele tê-la poupado de alguma observação sobre desperdício ou indiferença ao meio ambiente. Pegaram a estrada. Deixou que ele dirigisse mas pediu que fechasse as janelas e ligasse o ar. Lá fora a claridade era ofuscante. Depois de algumas tentativas de puxar conversa e só obter de volta monossílabos, o filho se calou, passou o resto da viagem concentrado na estrada esburacada e poeirenta. Sarita olhava a paisagem inóspita, o desenho dos cactos se esgueirando entre as pedras.

Uma semana se passou. Um século para Sarita, esgotada pelo esforço de não deixar transparecer o desgosto por tudo o que via e ouvia. A casa era rústica, mal aparelhada, desproporcional ao orgulho do casal ao exibir a horta, o jardim, o quarto que prepararam para ela: chão de cimento, sem ar condicionado, cama tosca, colchão de crina, mosquiteiro, coisas que nem imaginava ainda existissem. Os dois se esmeravam em agradá-la. Viviam rindo e se abraçando, preparavam cada refeição como se estivessem fazendo uma festa. As conversas não passavam de alguns comentários gerais; para evitar dar opinião Sarita abortava qualquer assunto, o papo não fluía. Mesmo assim às vezes escapava: “Vocês não tem empregada? A mão-de-obra aqui deve ser barata.” A nora sorria: “Carece não, Sarita, a gente dá conta da nossa bagunça.” E que bagunça! A casa vivia cheia, a porta sempre aberta, gente entrando e saindo a qualquer hora, para pedir alguma coisa ou trazer um bolo ou alguma fruta esquisita, ou mesmo para coisa nenhuma. Crianças, então, só não eram mais numerosas e assíduas que as moscas, que exigiam se cobrir tudo o tempo todo na cozinha. Apavorada com aquele entra-e-sai, Sarita mantinha a mala fechada a cadeado debaixo da cama, uma trabalheira cada vez que ia pegar ou guardar alguma coisa. Preocupava-a também o carro, estacionado em frente, imaginava como ia devolvê-lo, provavelmente avariado ou “depenado”.

Apesar do incômodo da casa, Sarita evitava sair, usava como pretexto o livro chato que o seu clube de leitura escolhera aquele mês. Deu uma ou duas voltas pela “cidade”, para lhe mostrarem satisfeitos a pracinha, o coreto, a igreja, o posto onde ela trabalhava, a escola onde ele lecionava, tudo absolutamente desinteressante. Cumprimentavam todo mundo, paravam para conversar, enquanto ela só queria desaparecer, fugir daquele calorão, daquela poeira, daqueles olhares curiosos. “São quase todos negros”, estranhou, “não esperava, aqui no sertão, e de olhos azuis, alguns?” Mal ouviu a explicação da nora, algo sobre origem de quilombo, endogamia, doença congênita dos olhos. Só atentou para o final: “Sabe o que é mais interessante? É que a padroeira da cidade é exatamente Santa Luzia, que na tradição católica é a protetora da visão. Aliás, você vai poder assistir à festa dela, é na véspera da sua viagem.” “Que bom!” , Sarita exclamou entusiasmadíssima, deixou que pensassem que era pela festa, mas pensava mesmo era na viagem de volta. Já planejava as providências ao chegar ao Rio: pelo menos uns dez dias em Búzios para a Lygia consertar os estragos na pele e no corpo, uma longa visita ao cabeleireiro, o modo como contaria a visita às amigas, omitindo os detalhes vergonhosos.

Chegou enfim a véspera da ansiada volta à “civilização”; Enquanto empurrava a mala para debaixo da cama, depois de guardar a roupa que trocara, o filho chamou:“Vamos dar um pulinho na festa, mãe”; e praticamente a arrastou para fora. Seguiu-os como uma rês a caminho do matadouro; “ o último sacrifício”, pensou. Nem reclamou quando lhe puseram na cabeça um horrendo chapéu de palha: “Ainda muito sol lá fora”, disseram, como se ela não soubesse, não estivesse encharcada de protetor solar e hidratante há dias.

Sentou-se num banquinho do bar da esquina, enquanto os dois se misturaram à pequena multidão que tomava a praça. Uma banda desafinava no coreto e todos dançavam. Tensa, sob o sol ainda causticante do final da tarde, sentia-se imunda, fustigada pelo vento que a cada lufada trazia mais poeira, com todos aqueles pés se arrastando. De repente viu o filho acenando, animado: “Vem, mãe, vai rolar uma ciranda!” Levantou-se, pesada, dirigiu-se ao meio do burburinho e logo os perdeu de vista. Atordoada com o barulho, nauseada com o cheiro de suor, foi puxada, agarrada por mãos ásperas e calejadas, à direita e à esquerda.

No auge da irritação, soltou uma das mãos, arrancou o chapéu da cabeça, jogou-o ao chão. O vento o levou para o meio da roda. Envergonhada por ter perdido o autocontrole, Sarita olhou de esguelha para a mulher que apertava sua mão do lado esquerdo. A mulher abriu um enorme sorriso de poucos dentes e, num movimento rápido, puxou o lenço que trazia à cabeça e arremessou-o para dentro da roda, junto ao chapéu. Um homem do outro lado tirou o boné e jogou também. Uma moça tirou o colar de miçangas e fez o mesmo. Um rapaz jogou as sandálias. Cada um foi jogando algo de seu, era já um monte de chapéus, lenços, colares, sandálias, cintos, bolsas, tudo no meio da roda e todos dançando em volta, girando, girando, girando.

Sarita foi de repente invadida por uma onda gigantesca, um verdadeiro tsunami varrendo o que encontrava dentro dela: irritação, desconforto, mágoas, decepções, ressentimentos, inveja, raiva, intolerância, ciúme, despeito, frustrações. O corpo se abria e expelia aquilo tudo. A pele deixava de separá-la do mundo, suas mãos se acomodavam nas dos vizinhos, viravam um prolongamento delas. A roda era toda uma coisa só, serpenteava, se contraía, se expandia, os símbolos das individualidades abandonados ali no meio. Nunca sentira aquilo antes, tentava dar nome. Não achava palavra que definisse. Estava nua, leve, ainda era ela mas agora parte de algo muito maior, como se tivesse saído do corpo ou seu corpo englobasse tudo. Descerrou os lábios, aderiu ao coro, a onda lhe vinha à boca no canto do refrão.

A dança acabou, a roda se desfez, cada um pegou suas coisas e se afastou. Sarita pegou o chapéu, encontrou o filho, voltaram para casa. Pela primeira vez notou a rede na varanda, se recostou, e ali mesmo adormeceu. Só acordou no dia seguinte, ao ouvir os primeiros movimentos na cozinha. Aspirou o cheiro forte do café e do pão saindo do forno. Descalça, juntou-se a eles, saboreou o suco de graviola, regou a macaxeira cozida com a manteiga de garrafa que nem tinha experimentado antes, tudo sob o olhar intrigado do filho. Caiu na realidade quando ele falou. “ Tá quase na hora, mãe, vou levá-la ao aeroporto.” Respondeu sorrindo: “Carece não, filho, eu dou conta de chegar lá.” Acostumado à nem sempre muito fina ironia da mãe, ele se surpreendeu quando viu que a frase não vinha acompanhada do costumeiro risinho sarcástico. Ela foi se arrumar. Na saída, pegou o chapéu na rede onde o deixara:“Vocês se incomodam se eu levar esse chapéu?” Enlaçou a nora, sussurrou-lhe um “muito obrigada” ao ouvido. Abraçou o filho com força, sentindo seu corpo musculoso, tão diferente de quando o abraçava assim, ainda bebê.

Entrou no carro, ligou o ar e fechou as janelas, na força do hábito. Na esquina viu umas crianças brincando. Abriu a janela, deu-lhes adeus, todos abanaram as mãozinhas. Desligou o ar, não fechou mais as janelas. Pôs-se a acenar para todos que passavam , a pé ou a cavalo, de jegue ou bicicleta. E eles sempre acenavam de volta. Vontade de não acabar aquela estrada, não chegar nunca ao aeroporto.

Após a decolagem, Sarita abriu a bolsa à procura da maquilagem. Viu que tinha esquecido. Reclinou a poltrona e o corpo. Simplesmente sorriu. Estranhamente feliz.


RJ. setembro 2008
TITCHA
A vida de Raquel parecia tirada de um manual. Tudo como deve ser. Infância alegre e despreocupada, cercada de afeto e cuidados. Boa filha, educada e obediente. Boa aluna, inteligente e aplicada. Conheceu David desde criança, as famílias muito amigas freqüentavam a mesma sinagoga, o mesmo clube, iam às mesmas festas e eventos, faziam as mesmas viagens. O coleguinha virou namorado, noivo, marido. A festa de casamento, logo após o mestrado, foi uma confraternização geral. Depois saíram para o doutorado na Alemanha, ele em Física, ela em Filosofia.

Lecionavam agora na UNICAMP. Moravam numa bela casa na Cidade Universitária, alugada, enquanto aguardam a venda do apê do Rio para construir a sua, no terreno que compraram, e aí pensar em ter dois, talvez três filhos. Um quotidiano tranqüilo: acordar cedo, malhar um pouco no pequeno ginásio que montaram no pavilhão ao lado da piscina, dar um mergulho, caminhar para a Universidade, voltar para o almoço, ela preparando o prato principal, ele inventando saladas, retornar ao trabalho e, no final da tarde, pegar um filme ou sair para jantar, ler ou estudar um pouco e dormir, às vezes transar. Nos fins de semana, teatro ou concerto, jantar ou churrasco com os colegas de Departamento, de um ou do outro.

Bonita, Raquel dispensava vaidades. Os cabelos crespos, negros, contrastando com a pele muito clara, usava-os presos num coque displicente. Sempre bem arrumada, nem modernosa nem antiquada. Elegante, sóbria. Calça comprida ou saia midi, blusas de cambraia, linho ou seda, tudo em tons pastéis, preto, bege ou cinza.

Naquele semestre, Raquel começou a primeira aula do jeito habitual: pediu que cada aluno se apresentasse e relatasse sucintamente seus objetivos com o curso e como ele se encaixava no seu plano de estudos. Distribuiu então o programa para iniciar sua exposição de conteúdo, metodologia, critérios de avaliação. Foi interrompida pelo barulho da porta aberta de chofre por uma retardatária.

- Desculpe, gente, custei a achar – pediu, com as mãos postas como em oração.

Coloriu a sala toda. A face ainda avermelhada da corrida, os cabelos castanhos dourados caindo em desalinho sobre os ombros, uma mecha azul no meio, argola de madeira numa orelha, top grená cheio de brilhos e fitinhas, difícil saber como cabia tanto em tão pouco espaço, calça verde oliva manchada, amarrada na altura dos quadris por um cadarço, deixando o umbigo exibir o piercing e a tatuagem esquisita, tênis All-Star prateado, sacola de pano amarelo coberta de broches e adesivos.

Raquel levou um tempo para conseguir retomar a fala e a atenção dos alunos do sexo masculino. No final da aula, chamou-a. Não via seu nome na lista.

- É o seguinte, Titcha, posso te chamar assim? Gosto de estrupiar o inglês como os gringos fazem com nossa língua. Sou de outro curso, de Artes Cênicas. – esticou o corpo com um braço estendido em direção à porta, como se fosse puxar o prédio do Instituto de Artes até ali para provar. Soube de ti, do teu curso, queria fazer de ouvinte.

Raquel hesitou, ponderou. Ela não era da área, podia ter dificuldade de acompanhar, mas a turma não estava cheia. Cedeu. Período de experiência. Em um mês reavaliava.

- Obrigada, Titcha, vou ser tua melhor aluna. Adoro Filosofia! - Abraçou a si mesma. A música do sotaque gaúcho era pontuada o tempo todo por gestos. Era como se falasse com o corpo todo.

Tornou-se mesmo a melhor aluna. Brilhante, intuitiva. Questionava tudo. Tirava das leituras coisas que nem Raquel havia pensado. A aula começava quando ela chegava. Não andava, deslizava, como aquelas bailarinas russas. Raquel ia decifrando sua linguagem corporal. Para fazer uma pergunta, sentava-se sobre uma das pernas, balançando a outra, impaciente. Quando se empolgava com alguma idéia, punha os pés no assento, abraçando os joelhos junto ao corpo. Se discordava, dizia “não” com um braço à frente, acenando adeus com a mão aberta.

A conversa depois da aula, inaugurada no primeiro dia, virou rotina. Enquanto os outros alunos saíam, ela se acercava da mesa de Raquel, às vezes sentava em cima. Raquel já se demorava, arrumando livros e papéis, na expectativa. Tinha sempre um comentário sobre a aula, primeiro, depois sobre Raquel.

- Muito boa a aula hoje, Titcha. Mas me diz: por que tu prende o cabelo? Tão cacheado, ficava lindo solto. O rosto é o quadro, o cabelo a moldura. Não gosto de quadro sem moldura. – agitou os cabelos de um lado para o outro.

O que mais intrigava Raquel mesmo era o cheiro. Tentava definir. Não era perfume, que ela obviamente não usava. Era dela. Cheiro de flor, mas não de uma flor específica. Uma flor genérica. Cheiro da idéia de flor.

- Tinha achado pesado o texto de hoje,Titcha, com a discussão entendi melhor. Tá abafado hoje, né? Por que tu fecha a blusa até em cima? Eu acho importante manter o colo exposto, aberto para receber o que vier. A pior invenção do mundo foi a gravata, matou a sensibilidade dos homens. – com o queixo levantado, deslizou a mão do pescoço pelo colo, quase chegando aos seios.

Nesse dia estava com um vestido de crochê, cor de barbante. Quando se virou para sair, Raquel não conseguiu desgrudar os olhos das costas nuas, com apenas algumas tirinhas coloridas se cruzando atrás. Nunca usava nada por baixo. Dava para ver a ponta de outra tatuagem, parecida com a do umbigo, quase no rego das nádegas.

- Genial o paralelo que tu fez com a mitologia. Arrasou. Sabe? Eu queria ter o olho como o teu. Azul. Profundo. Merecia um realce. Nem precisa delineador, só o lápis. Assim, ó. – Fechou os olhos e aproximou o rosto para mostrar. A boca entreaberta, tão perto que Raquel teve que morder os lábios para contê-los.

Normalmente avessa a shoppings, Raquel começou a freqüentar um, esqueceu as butiques chiques do Cambuí. Comprava saias mais curtas, vestidos e blusas de cores vivas, decotadas. E cosméticos: passou a escolher com mais apuro batom, rímel, lápis, blush, delineador. Diminuiu o exercício matinal para ficar mais tempo se arrumando, escovando os cabelos que agora deixava livres, se olhando no espelho. David apreciava as mudanças. A mulher estava mais solta. Principalmente na cama. Um fogo que não conhecia. Tomava a iniciativa, queria sempre mais. O que não suspeitava é que quando transavam e Raquel fechava os olhos era a outra que ela abraçava, apertava forte para conter seus rodopios e trejeitos, lambia as tatuagens e piercings, beijava, tocava e possuía seu corpo inteiro.

Um dia não apareceu. A aula parecia se arrastar. Os alunos entorpecidos. Raquel vigiava a porta, ouvia sua própria voz monótona como se recitasse uma ladainha. Arranjou um pretexto e encerrou mais cedo. Não foi direto para casa. Deu uma volta para passar pela rua onde ficava sua “republiqueta”, como ela chamava a casa que dividia com algumas colegas.

Da esquina a viu com outra menina, sentadas na grama recostadas numa árvore e uma na outra, falando, rindo, tomando sorvete, de shortinho e camiseta. Se escondeu atrás da guarita do segurança, comprimindo a pasta contra o peito, pra não saber se a dor era da pressão ou do ciúme.

Na aula seguinte ela chegou mais cedo, com uma maçã na mão estendida. Raquel não pegou. Deixou que pusesse na mesa. Só perguntou por quê não viera na aula passada. Queria conhecer o gesto da mentira.

- Problemas em casa. – Coçou a ponta do nariz com o polegar e o indicador. Não gosta de maçã, Titcha? É da feira da pracinha. Aliás, nunca te vi lá, mas também vou quase no final, gosto de acordar tarde no sábado.

Raquel passou a ir à feirinha do sábado. Só que bem cedo, para não encontrá-la. Bastava-lhe saber que depois ela andaria pelo mesmo lugar, talvez tocaria as mesmas frutas.

Final do semestre. Ùltima aula. Raquel propôs que os alunos redigissem sua avaliação, comparando as expectativas do início com o resultado. Esperava ansiosa que acabassem para contar-lhe a novidade: que daria Filosofia e Arte no próximo semestre, que o Departamento ia oferecer a disciplina como eletiva para o curso dela (só não diria que a seu pedido), que ela poderia se matricular regularmente. Antevia sua alegria, sua excitação

Quando todos saíram, ela se debruçou sobre Raquel. Falou primeiro:

- Adivinha o quê, Titcha: vou pra França! Minha irmã vai fazer o doutorado lá, perguntou se quero ir, ajudar com a guria.

Raquel tentava achar o chão com os pés, sob a mesa.

- Que guria? – balbuciou.

- Minha sobrinha, filha dela. Eu já sou titia, não pareço? – Deu um giro completo com o corpo, braços abertos. Como se tias vivessem rodopiando em passarelas.

- Quando? – Raquel quase gaguejou.

- Quando eu virei tia? Ou quando eu vou pra França? Daqui a um mês, Titcha.

- Por quê? – Raquel não conseguiu evitar.

Ela se aproximou mais. Endireitou o corpo, se retesou, apagou o sorriso brejeiro. Como se tivesse virado mulher, de repente. Pela primeira vez falou seu nome:

- Na verdade ainda não decidi, Raquel. Queria tua opinião. É em Montpellier, tem um curso de Teatro ótimo, podia ser bom. Acho que aqui não posso ter o que mais quero, melhor me afastar. Não é assim que deve ser, Raquel? Mas se tu disser que não, eu não vou.

Raquel tentava se recompor. Procurava palavras:

- Pode ser uma boa idéia. Experiência. Sempre pode voltar se não gostar. Bom para aprimorar o Francês, também.

Baixou a cabeça e fingiu se concentrar nas anotações sobre a mesa, passar os conceitos finais para a caderneta, folhear as avaliações dos alunos. Quando levantou os olhos, ela não estava mais lá. Só o cheiro.

Raquel inspirou profundamente. Recolheu suas coisas, prendeu os cabelos com um lápis e saiu. Lá fora, sentiu frio, fechou a blusa até o pescoço, levantou a gola. Na volta para casa, teve que apressar o passo. Tinha escurecido de repente, parecia que ia cair um toró. Estava tudo cinza.


RJ, agosto 2008
VIAGENS



Depois de alguns encontros, basicamente jantares e teatro ou cinema, quando Mário a convidou para um fim-de-semana prolongado num resort em Olivença Sandra resolveu aceitar. Afinal de contas, já estava viúva e evitando todo tipo de relacionamento há mais de seis anos. Mário era advogado da firma onde trabalhava, viúvo e quarentão como ela, e aparentemente tinham muita coisa em comum. Quem sabe não poderia ser um recomeço?

Conversou com a filha, Camila, que só lhe pediu que dessa vez não tivesse que ir para a casa da avó, como sempre que a mãe viajava a trabalho. Apesar de ter apenas 16 anos, era uma pessoinha tão sensata e responsável que a mãe se sentiu confiante para concordar que ficasse sozinha no apartamento, não sem antes listar um monte de recomendações e conselhos. Preocupada principalmente com o fato de que haveria jogo da Copa naquele domingo, sugeriu que Camila não saísse, convidasse alguém para assistir com ela em casa: “Tem sempre muita bagunça, muito bêbado na rua nesses dias” – alertou.

Sandra não tinha muitas ilusões sobre o futuro da relação com Mário, mas estava cansada de ser acusada de ter desistido do amor, de recusar os encontros que as amigas armavam, amigas que lhe repetiam à exaustão que ela era uma mulher jovem e atraente, não podia ficar presa à memória do marido, etc. O problema é que, nas poucas vezes em que saiu com alguém, não conseguia evitar as comparações. E a imagem do marido, com o tempo, foi ficando cada vez mais idealizada, realçadas as qualidades, apagados os defeitos.

Se fora apaixonada por ele em vida, agora falava dele como um verdadeiro ídolo, homem formidável, sensível, educadíssimo, um “cavalheiro como não se vê mais”.
Pelo menos assim se justificava todo o tempo que desperdiçou da própria vida para cuidar dele. Vida que agora tentava recuperar, voltando a trabalhar, buscando se afirmar.

A viagem com Mário seria mais uma tentativa. E logo na ida começaram as decepções. Mário, que ela julgava extremamente gentil e educado, proveniente que era de uma rica família tradicional paulista, começou a se revelar já no avião, chamando a aeromoça a cada cinco minutos para pedir algo ou reclamar. No carro alugado para o trajeto de Ilhéus a Olivença ultrapassava em curvas e faixas contínuas, evitou um trecho engarrafado usando o acostamento, buzinava apressando um motorista mais cauteloso, irritava-se com qualquer obstáculo à sua passagem.

Quando chegaram ao resort, Sandra já ia abrir a mala no apartamento que reservaram , para pegar um biquine e correr para a praia defronte, mas Mário não gostou do apartamento, chamou a recepção, depois o gerente, e foi procurar um que achasse mais conveniente, e nisso levou mais de hora: de um não gostava da vista, noutro o colchão era muito mole, o banheiro do outro mal posicionado. Quando enfim se instalaram, o sol estava se pondo e Sandra, conformada com a tarde perdida, chamou-o para uma volta na praia, para apreciarem o crepúsculo. Mário tinha ligado a TV e se estirado na cama, propôs que deixassem para o outro dia, estava muito cansado.

Foi o fim-de-semana mais longo da vida de Sandra. Nada dava certo. Mário reclamava de tudo, tratava mal a camareira, mandava o prato voltar no restaurante, pois a carne estava sempre aquém ou além do ponto, a tal caminhada noturna era sempre adiada, porque tinha combinado um carteado com outros hóspedes ou porque preferia ficar no quarto bebericando, vendo TV ou “fazendo amor” – na verdade outro desastre: depois de algumas tentativas desajeitadas, ela, se sentindo uma pedra de gelo, insensível às suas carícias meio apressadas e grosseiras, pediu mil desculpas, que tinha avaliado mal, que ainda não estava pronta para aquilo. No fundo, tudo que ela queria era voltar para casa o mais rápido possível, antes que resolvesse nunca mais tentar de novo.

Camila, por sua vez, seguindo o conselho da mãe, chamou os colegas do cursinho para virem assistir o jogo em sua casa. Preparou tudo: salgadinhos, pipoca, refrigerantes, até um bolo de chocolate para comemorarem a vitória no final. Estava animada com a perspectiva de receber sozinha, desmanchando em parte a imagem que faziam dela, de menina certinha e grudada na mãe. Era com certeza muito séria e compenetrada, os colegas às vezes diziam que parecia uma velha. Dedicava-se integralmente aos estudos, rejeitando passeios no shopping, cinemas e “baladas”, preparando-se para o vestibular de Medicina, com o sonho de especializar-se em Psiquiatria, seguindo os passos do pai que idolatrava. Sofrera profundamente com sua doença e morte, sofrimento duplicado por ver a tristeza e desolação da mãe tão dedicada, o que o tornara até mais presente do que fora em vida, sempre ocupado, envolvido em estudos, congressos, etc, quase sem tempo para ela.

Tentou disfarçar seu susto quando viu que, ao saberem que sua mãe não estaria, os colegas que chamara trouxeram outros amigos e, quando deu por si, a casa estava cheia de gente e cada vez chegavam mais, trazendo cerveja, bandeirolas, cornetas, uma algazarra como aquela casa nunca vira. Esmerava-se para atender a todos, controlar a bagunça, nem conseguiu ver o jogo. E, mesmo quando o jogo acabou, ninguém ia embora. Ligaram o som bem alto, dançavam, bebiam , namoravam. Camila não sabia o que fazer, apenas se esforçava para acompanhar a alegria geral e não demonstrar preocupação.

Reparou que alguns tinham ido para o seu quarto, outros para o escritório, e, de repente, viu um grupo no quarto da mãe. Foi até lá pedir-lhes que voltassem à sala, mas estavam bem instalados, sorridentes, usando o tampo de vidro da mesinha de cabeceira para alinhar as fileiras de pó que se revezavam cheirando.

Camila já tinha feito uma concessão, rara para ela, passando do refrigerante para a cerveja que trouxeram, agora a chamavam para se juntar a eles. Num impulso que não soube explicar depois para si mesma, talvez por causa daquela vontade de mudar a imagem que faziam dela, ou pelo medo com as dimensões que a coisa toda ia tomando, aceitou. E ainda fumou um cigarro que lhe puseram nas mãos. Em pouco tempo, sentiu seu corpo tomado de uma grande excitação, um turbilhão, a cabeça zonza com toda aquela gente berrando, as risadas, a música alta. O barulho de um copo quebrando na sala foi a gota d’água. Começou a gritar, desligou o som, empurrou as pessoas para a porta sem ouvir os protestos, só ouvia sua própria voz:”Fora! Fora! Fora!”.

Quando conseguiu que todos saíssem, trancou as portas, andando frenética pela casa, fechando janelas, cortinas, agitadíssima. Tinha a impressão que a casa ia ser invadida. Arrastou o sofá para impedir a entrada pela porta da frente, barrou a porta de serviço com a mesa da cozinha, trancou-se no quarto da mãe, deitou-se em sua cama e escondeu-se sob a colcha. Ouvia ruídos estranhos: alguém tentando quebrar a janela para jogá-la do décimo andar; alguém cavando a parede para entrar pelo apartamento vizinho. Tremia de pânico, esperando pelo pior, suando em bicas, sem coragem de se levantar sequer para ligar o ar. Ainda estava ali toda encolhida quando acordou no dia seguinte, com uma baita dor de cabeça e um travo amargo na boca. Deu graças aos céus quando lembrou que a mãe só chegaria na terça. Pôs mãos à obra: começou a arrumar, varrer, lavar, esfregar, polir, chão, paredes, janelas, móveis, louça, cozinha, banheiro. A noite chegou e ela nem notou, não parava de limpar, trocar as roupas das camas, espanar até o teto, ela que nunca fizera mais que arrumar o próprio quarto, imitava o que via Celeste, a faxineira, fazer. A cada vez que parecia ter acabado, voltava ao quarto da mãe, que nunca lhe parecia suficientemente limpo, lustrava tudo de novo.

Quando Sandra entrou em casa, ficou impressionada. Camila explicou que deu um jeitinho na casa, depois que os amigos saíram, só pedia desculpas porque tinham quebrado um copo, mas ia achar outro igual, podia descontar da mesada. Sandra riu: “Um jeitinho? Um copo? E a economia que vou ter, dispensando a Celeste? Esta casa nunca esteve tão limpa!” As duas sentaram na copa, comendo o bolo de chocolate que restara intacto. Camila quis saber da viagem. E a mãe: “Maravilhosa! É lindo lá, podíamos ir nós duas, depois do vestibular!” “Ótimo, mãe, mas vai ter que ser rápido, que antes de começar a faculdade quero dar um tempo como voluntária numa entidade que trata de adolescentes viciados, que vi na Internet.”

Beijaram-se e cada uma foi para seu quarto. Dormiram felizes: Camila por ter a mãe reencontrado o amor, Sandra de orgulho pela maturidade da filha.

RJ, julho 2008