domingo, 28 de fevereiro de 2010

CADÊ MEU PAI ?


Entrei correndo na capela, preocupada; atrasada, como sempre. Culpa do taxista, que não achava a entrada. Vi que o corpo já estava ali, me aproximei. Acariciei, sobre o véu de proteção, os cabelos brancos. “Meu pai”, sussurrei, apreciando o trabalho de quem o preparou: no final não comia, estava com as faces muito encovadas, devem ter feito algum preenchimento. Como ficou diferente, sem a vivacidade dos olhos azuis que davam um brilho especial ao seu sorriso zombeteiro! Um olhar de criança travessa, uma piada sempre pronta, debochando de qualquer convenção, preceito moral ou ético.

Para não estragar a lembrança que quero guardar dele, vivo e gozador, me afastei do corpo e fui sentar numa das cadeiras enfileiradas, acomodada no pensamento-chavão: “parece dormir”... Olhei em volta e não reconheci ninguém. Estranhei tantas pessoas idosas, pois ele estava sempre cercado de gente jovem, amigas das filhas do segundo casamento, que têm idade para ser minhas filhas. Imaginei que deviam ser os parentes dele da Piedade; alguém tinha ficado encarregado de avisar; eu não os via há décadas, não identificava ninguém.

Mais estranho era minhas irmãs não terem chegado ainda; tínhamos combinado de escolher juntas uma coroa de flores. Vi que alguma deve ter vindo e cansado de esperar, pois a coroa já estava lá, com “saudades eternas dos familiares e amigos”. Provavelmente a Joana; providenciou a coroa e foi buscar a filha.

Pensei: “agora sou a mais velha da família” (a "bola da vez”?)... Fiquei repassando na memória algumas proezas do papai, pequenos acontecimentos do cotidiano, afastando as cenas dos últimos dias, o sofrimento, nossas dúvidas e ansiedades, o cansaço dos revezamentos no hospital, o estresse das decisões costumeiras: “pediu coca-cola, dou ou não?”; “a médica acha melhor alimentar por sonda, deixamos ou não?”; e por aí vai.

De repente uma senhora que estava sentada do outro lado se aproximou de mim. Devia ter por volta de 80 anos, muito arrumada, blusa de seda, saia quase nas canelas, antiquada mas elegante. Tinha nas mãos um lencinho bordado, com o qual de vez em quando enxugava uma lágrima furtiva. Muito magra, cabelos brancos penteados para trás, parecia nervosa, mas caminhava empertigada, como se desfilasse.

- E a senhora, quem é? - me perguntou, muito baixinho, com um jeito meigo.

- Sou Marina, a filha dele. - respondi, também baixinho.

- Como? Filha dele? O que é isso? O que está acontecendo? - ficou agitada, levantou a voz, parecia que ia ter um chilique.

Outra senhora se levantou, acercou-se, amparou-a pelos ombros, perguntou de novo:

- Quem é a senhora?

- Marina, a filha mais velha. - repeti.

- Filha do Darcy? - ela arregalou os olhos.

- Que Darcy? - perguntei.

Ela apontou para o caixão. Então me dei conta do terrível equívoco:

- Esta não é a capela 1?

- Sim.

- Do cemitério da Ordem Terceira da Penitência?

- Não! Do cemitério da Ordem do Carmo!

- Me desculpem! Errei de cemitério! - saí correndo, para não ter que completar: “ e de morto!”

Cheguei esbaforida ao cemitério certo. De longe já vi minhas irmãs me procurando, sem entender meu atraso. Pelo menos pudemos escolher juntas a coroa, embora no final tenha ficado quase igual à outra. Quando contei minha desventura recente, rimos muito: papai teria adorado essa história. Em certos momentos da vida ( e da morte) somos todos mesmo muito parecidos.



RJ, maio 2009

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