domingo, 28 de fevereiro de 2010

VIAGENS



Depois de alguns encontros, basicamente jantares e teatro ou cinema, quando Mário a convidou para um fim-de-semana prolongado num resort em Olivença Sandra resolveu aceitar. Afinal de contas, já estava viúva e evitando todo tipo de relacionamento há mais de seis anos. Mário era advogado da firma onde trabalhava, viúvo e quarentão como ela, e aparentemente tinham muita coisa em comum. Quem sabe não poderia ser um recomeço?

Conversou com a filha, Camila, que só lhe pediu que dessa vez não tivesse que ir para a casa da avó, como sempre que a mãe viajava a trabalho. Apesar de ter apenas 16 anos, era uma pessoinha tão sensata e responsável que a mãe se sentiu confiante para concordar que ficasse sozinha no apartamento, não sem antes listar um monte de recomendações e conselhos. Preocupada principalmente com o fato de que haveria jogo da Copa naquele domingo, sugeriu que Camila não saísse, convidasse alguém para assistir com ela em casa: “Tem sempre muita bagunça, muito bêbado na rua nesses dias” – alertou.

Sandra não tinha muitas ilusões sobre o futuro da relação com Mário, mas estava cansada de ser acusada de ter desistido do amor, de recusar os encontros que as amigas armavam, amigas que lhe repetiam à exaustão que ela era uma mulher jovem e atraente, não podia ficar presa à memória do marido, etc. O problema é que, nas poucas vezes em que saiu com alguém, não conseguia evitar as comparações. E a imagem do marido, com o tempo, foi ficando cada vez mais idealizada, realçadas as qualidades, apagados os defeitos.

Se fora apaixonada por ele em vida, agora falava dele como um verdadeiro ídolo, homem formidável, sensível, educadíssimo, um “cavalheiro como não se vê mais”.
Pelo menos assim se justificava todo o tempo que desperdiçou da própria vida para cuidar dele. Vida que agora tentava recuperar, voltando a trabalhar, buscando se afirmar.

A viagem com Mário seria mais uma tentativa. E logo na ida começaram as decepções. Mário, que ela julgava extremamente gentil e educado, proveniente que era de uma rica família tradicional paulista, começou a se revelar já no avião, chamando a aeromoça a cada cinco minutos para pedir algo ou reclamar. No carro alugado para o trajeto de Ilhéus a Olivença ultrapassava em curvas e faixas contínuas, evitou um trecho engarrafado usando o acostamento, buzinava apressando um motorista mais cauteloso, irritava-se com qualquer obstáculo à sua passagem.

Quando chegaram ao resort, Sandra já ia abrir a mala no apartamento que reservaram , para pegar um biquine e correr para a praia defronte, mas Mário não gostou do apartamento, chamou a recepção, depois o gerente, e foi procurar um que achasse mais conveniente, e nisso levou mais de hora: de um não gostava da vista, noutro o colchão era muito mole, o banheiro do outro mal posicionado. Quando enfim se instalaram, o sol estava se pondo e Sandra, conformada com a tarde perdida, chamou-o para uma volta na praia, para apreciarem o crepúsculo. Mário tinha ligado a TV e se estirado na cama, propôs que deixassem para o outro dia, estava muito cansado.

Foi o fim-de-semana mais longo da vida de Sandra. Nada dava certo. Mário reclamava de tudo, tratava mal a camareira, mandava o prato voltar no restaurante, pois a carne estava sempre aquém ou além do ponto, a tal caminhada noturna era sempre adiada, porque tinha combinado um carteado com outros hóspedes ou porque preferia ficar no quarto bebericando, vendo TV ou “fazendo amor” – na verdade outro desastre: depois de algumas tentativas desajeitadas, ela, se sentindo uma pedra de gelo, insensível às suas carícias meio apressadas e grosseiras, pediu mil desculpas, que tinha avaliado mal, que ainda não estava pronta para aquilo. No fundo, tudo que ela queria era voltar para casa o mais rápido possível, antes que resolvesse nunca mais tentar de novo.

Camila, por sua vez, seguindo o conselho da mãe, chamou os colegas do cursinho para virem assistir o jogo em sua casa. Preparou tudo: salgadinhos, pipoca, refrigerantes, até um bolo de chocolate para comemorarem a vitória no final. Estava animada com a perspectiva de receber sozinha, desmanchando em parte a imagem que faziam dela, de menina certinha e grudada na mãe. Era com certeza muito séria e compenetrada, os colegas às vezes diziam que parecia uma velha. Dedicava-se integralmente aos estudos, rejeitando passeios no shopping, cinemas e “baladas”, preparando-se para o vestibular de Medicina, com o sonho de especializar-se em Psiquiatria, seguindo os passos do pai que idolatrava. Sofrera profundamente com sua doença e morte, sofrimento duplicado por ver a tristeza e desolação da mãe tão dedicada, o que o tornara até mais presente do que fora em vida, sempre ocupado, envolvido em estudos, congressos, etc, quase sem tempo para ela.

Tentou disfarçar seu susto quando viu que, ao saberem que sua mãe não estaria, os colegas que chamara trouxeram outros amigos e, quando deu por si, a casa estava cheia de gente e cada vez chegavam mais, trazendo cerveja, bandeirolas, cornetas, uma algazarra como aquela casa nunca vira. Esmerava-se para atender a todos, controlar a bagunça, nem conseguiu ver o jogo. E, mesmo quando o jogo acabou, ninguém ia embora. Ligaram o som bem alto, dançavam, bebiam , namoravam. Camila não sabia o que fazer, apenas se esforçava para acompanhar a alegria geral e não demonstrar preocupação.

Reparou que alguns tinham ido para o seu quarto, outros para o escritório, e, de repente, viu um grupo no quarto da mãe. Foi até lá pedir-lhes que voltassem à sala, mas estavam bem instalados, sorridentes, usando o tampo de vidro da mesinha de cabeceira para alinhar as fileiras de pó que se revezavam cheirando.

Camila já tinha feito uma concessão, rara para ela, passando do refrigerante para a cerveja que trouxeram, agora a chamavam para se juntar a eles. Num impulso que não soube explicar depois para si mesma, talvez por causa daquela vontade de mudar a imagem que faziam dela, ou pelo medo com as dimensões que a coisa toda ia tomando, aceitou. E ainda fumou um cigarro que lhe puseram nas mãos. Em pouco tempo, sentiu seu corpo tomado de uma grande excitação, um turbilhão, a cabeça zonza com toda aquela gente berrando, as risadas, a música alta. O barulho de um copo quebrando na sala foi a gota d’água. Começou a gritar, desligou o som, empurrou as pessoas para a porta sem ouvir os protestos, só ouvia sua própria voz:”Fora! Fora! Fora!”.

Quando conseguiu que todos saíssem, trancou as portas, andando frenética pela casa, fechando janelas, cortinas, agitadíssima. Tinha a impressão que a casa ia ser invadida. Arrastou o sofá para impedir a entrada pela porta da frente, barrou a porta de serviço com a mesa da cozinha, trancou-se no quarto da mãe, deitou-se em sua cama e escondeu-se sob a colcha. Ouvia ruídos estranhos: alguém tentando quebrar a janela para jogá-la do décimo andar; alguém cavando a parede para entrar pelo apartamento vizinho. Tremia de pânico, esperando pelo pior, suando em bicas, sem coragem de se levantar sequer para ligar o ar. Ainda estava ali toda encolhida quando acordou no dia seguinte, com uma baita dor de cabeça e um travo amargo na boca. Deu graças aos céus quando lembrou que a mãe só chegaria na terça. Pôs mãos à obra: começou a arrumar, varrer, lavar, esfregar, polir, chão, paredes, janelas, móveis, louça, cozinha, banheiro. A noite chegou e ela nem notou, não parava de limpar, trocar as roupas das camas, espanar até o teto, ela que nunca fizera mais que arrumar o próprio quarto, imitava o que via Celeste, a faxineira, fazer. A cada vez que parecia ter acabado, voltava ao quarto da mãe, que nunca lhe parecia suficientemente limpo, lustrava tudo de novo.

Quando Sandra entrou em casa, ficou impressionada. Camila explicou que deu um jeitinho na casa, depois que os amigos saíram, só pedia desculpas porque tinham quebrado um copo, mas ia achar outro igual, podia descontar da mesada. Sandra riu: “Um jeitinho? Um copo? E a economia que vou ter, dispensando a Celeste? Esta casa nunca esteve tão limpa!” As duas sentaram na copa, comendo o bolo de chocolate que restara intacto. Camila quis saber da viagem. E a mãe: “Maravilhosa! É lindo lá, podíamos ir nós duas, depois do vestibular!” “Ótimo, mãe, mas vai ter que ser rápido, que antes de começar a faculdade quero dar um tempo como voluntária numa entidade que trata de adolescentes viciados, que vi na Internet.”

Beijaram-se e cada uma foi para seu quarto. Dormiram felizes: Camila por ter a mãe reencontrado o amor, Sandra de orgulho pela maturidade da filha.

RJ, julho 2008

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