domingo, 28 de fevereiro de 2010

A HORA E A VEZ DE A.M.

Não é a primeira vez que participo de um grupo em que se propõe que se liste os 10 melhores filmes, na opinião de cada um. Não é tampouco a primeira vez que omito na minha lista um filme que teve um papel fundamental na minha vida: “A hora e a vez de Augusto Matraga”. A omissão não é gratuita. Não se trata de desmerecer a beleza ou a importância do filme. A questão é que eu simplesmente não o assisti.

Estava eu fazendo dois meses de cursinho pré-vestibular (depois de muitos cálculos foi o que deu para pagar), e um colega começou a me paquerar: me dava carona após a aula, convidava para um chopinho e coisa e tal. Eu nunca tinha namorado, mas os hormônios adormecidos pelo intelecto se impuseram, e um dia acabei aceitando acompanhá-lo até o pequeno apartamento que improvisara, depois de um desentendimento com os pais, em Santa Teresa.

Era um rapaz razoavelmente rico, na minha avaliação, pois carro e apartamento eram sinais de uma vida bem diferente da minha. Nasci pobre, e minha mãe tinha uma série de preceitos que tínhamos de seguir por isso: tínhamos que ser honestos (“pobre vai para a cadeia, rico não”); trabalhar muito sem descuidar do estudo (“ter uma profissão, um emprego com estabilidade”); aliás, tirar sempre as notas mais altas (“rico não precisa, tem herança”); não ver tevê na casa dos outros (para não saberem que não tínhamos); não ler jornal (“tem muita coisa imprópria”) nem gibi, só livros; andar sempre arrumado (ela mesma varava a noite costurando, cerzindo, lavando e engomando as nossas roupas); falar direito (nem gíria, nem palavrão, nem apelido).

Havia ainda os preceitos específicos por sexo: meus irmãos não podiam nos bater, o que era ótimo: quando eu brigava com um, ele não podia revidar (“homem não bate em mulher, nem com uma rosa”); já as filhas mulheres (minha irmã e eu) não podiam ser “moças fáceis”, nem ficar pensando em namoro e casamento, pois “mulher não pode depender de homem, tem que ter uma carreira”. Assim, eu via minhas coleguinhas de ginásio trocando confidências e segredinhos, rindo maliciosamente, enquanto eu vivia mergulhada nos livros.

Eu tinha decidido enfim por uma profissão: ia estudar Sociologia. O motivo era tentar entender essa dicotomia entre ricos e pobres que matizava toda a minha vida, e que eu sabia que não era culpa nossa (afinal, fazíamos tudo certinho), nem de Deus (a essa altura não mais que uma sublime ausência). Achei que só podia ser uma questão social, e me dispus a decifrá-la.

Então ali estava eu , de repente, no apartamento do colega, que foi logo se pondo à vontade, tirando sapato, camisa, sentando no colchão que fazia as vezes de sofá e cama, cheio de almofadas, no chão. Ficamos conversando, ouvindo música, descobrindo muita coisa em comum, e eu também fui ficando à vontade. Logo estávamos nus, trocando mil carícias. Tudo muito natural e gostoso, eu enfim me tornando mulher.

Sabia que tinha cometido um pecado mortal, pelo menos para minha mãe; ele me deixou em casa (na esquina, pois também não se devia deixar ver que morávamos num prédio de conjugados), mas eu tinha perdido totalmente noção da hora. Minha mãe me esperava na portaria, e, ao me ver, mudou o ar de preocupação para reprovação. Perguntou onde eu estivera, respondi rapidamente, pedindo desculpas, que tinha ido ao cinema com algumas colegas.

-Que filme? - ela perguntou, brava .

-“ A hora e a vez de Augusto Matraga” - foi o que me ocorreu; tinha ouvido alguém comentar sobre esse filme, e tinha certeza que mamãe não saberia o que era – não me lembro de tê-la visto ir ao cinema, mas mesmo que fosse, não seria para ver filmes nacionais, pois, segundo ela, “ antes era só pornografia, agora só mostram miséria” . Ela certamente assinaria embaixo a declaração, depois famosa, do Joãozinho Trinta, de que “pobre não gosta de miséria; quem gosta de miséria é intelectual”.

Já me deparei, depois, com anúncios desse filme em algumas mostras de cinema brasileiro, mas nunca quis assistir. Desconheço o diretor, os atores, o enredo. Minha impressão é que, se o vir, estrago o prazer da minha maior mentira. No meu imaginário, também recuperaria a virgindade, da qual custei tanto para me livrar.

RJ, julho 2009

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