domingo, 28 de fevereiro de 2010

A LENDA DA FOLIÃ CAPENGA



Não conseguia nem fingir que era feliz. A alegria dos outros a irritava; achava tudo farsa, a euforia do Carnaval escondia os problemas de família, trabalho, relações. Ela não tinha como disfarçar, pior não podia estar. Quem mandou namorar homem casado? Com o mesmo papo de "amor" pra cá, " querida" pra lá, com que garantira passar o Carnaval com ela, veio com essa de que não foi possível, pediu perdão, jurou que na Semana Santa fariam a viagem prometida. Nem deu para lhe contar que perdeu o emprego, que ia ter que procurar outro após os feriados. E agora? Não tinha plano B, descartara todas as propostas dos amigos. Uma coisa era certa: não ia aguentar ficar em casa. Sua rua era passagem de blocos quase todos os dias, insuportável aquela algazarra, aquela palhaçada... Anotou os horários, para programar evitá-los.

O bloco de sábado era no final da tarde. Foi visitar a mãe. Mal entrou na casa viu que a irmã estava lá. Clima tenso, como sempre. Logo estavam discutindo, a irmã cobrando uma maior presença dela no cuidado da mãe, dizendo não entender porque ela não vinha morar ali, ela cobrando da irmã que levasse a mãe para morar com ela, já que era casada e tinha uma casa com toda a "infra", por causa dos filhos, etc. A mãe fingia assistir TV e não ouvir a discussão constrangedora. Ela saiu aos prantos. Quando chegou em casa desabou na poltrona da sala. Ainda bem que o bloco já tinha passado, estava tudo calmo, a rua suja mas silenciosa.

Domingo o bloco era logo depois do almoço. Decidiu almoçar em Petrópolis, respirar ar puro. Chegou à Av. Brasil até facilmente, mas antes de pegar a Rio-Petrópolis o carro parou de repente. O tanque estava cheio; o que podia ser? Tentou dar partida várias vezes. Ligou pro mecânico, torceu que atendesse. Deu sorte. Ele ia terminar um "servicinho" e logo a socorreria. Apareceu uma hora depois, examinou, tentou alguma coisa. Nada. De tudo o que ele disse, só ouviu quando falou em rebocar, e "dar uma posição" na sexta. Duas horas depois o reboque chegou, pôde ir para casa. Suspirou aliviada porque o bloco já tinha passado, estava tudo calmo, a rua suja mas silenciosa.

Destinado às crianças, o bloco de segunda era de manhã. Tomou um café rápido e foi para o Aterro do Flamengo. Caminhou devagar, alongando o corpo, apreciando a zoada das maritacas. Sentiu-se mais leve, reconfortada. Na volta, não viu o buraco na rua, pisou de mau jeito, torceu o pé e caiu, batendo o lado numa mureta. A dor nas costelas era lancinante e não conseguia firmar o pé. Alguém a ajudou a levantar e chegar ao seu prédio, o porteiro levou para o apartamento. Não quis hospital, achou que bastava colocar gelo. Improvisou um sanduíche e se estatelou na cama. Pelo menos o bloco já tinha passado, estava tudo calmo, a rua suja mas silenciosa.

No dia seguinte levantou com ajuda da bengala que a vizinha tinha emprestado. Ao se ver no espelho, levou um susto: olhos fundos, rosto emaciado, cabelos desgrenhados. Resolveu acabar com aquilo. Tomou uma chuveirada, ajeitou os cabelos, caprichou na maquilagem. Catou no armário uma minissaia antiga, uma meia arrastão, uma blusa tomara-que-caia, colar e pulseiras coloridos. Fixou o tornozelo com uma tala. Empunhou a bengala e saiu procurando um bloco. Não havia nenhum na sua rua naquele dia. De táxi, achou um quase do outro lado da cidade. Mergulhou na folia. No meio do desfile já tinha esquecido as dores. Agitava a bengala, pulava e cantava.

Até hoje ninguém sabe o que aconteceu depois. Uns dizem que ela continua vagando pelas ruas da cidade, cantando e girando a bengala, com a qual agride quem tenta se aproximar. Outros dizem que ao atravessar a rua para comprar uma garrafa de água foi atropelada por um caminhão. Há também quem diga que ali no bloco mesmo conheceu um cineasta argentino, vive hoje com ele em Buenos Aires e conseguiu enfim ser feliz.


RJ, fevereiro 2010

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