domingo, 28 de fevereiro de 2010

ENTRE A CERVEJA E O CHOCOLATE

“Dentro de mim há dois cães; um deles é cruel e mau; o outro muito bom. Os dois estão sempre brigando. O que ganha é aquele que eu alimento mais frequentemente.” - provérbio dos índios norteamericanos

Levantou-se e caminhou até a frente, sentou na cadeira ao lado da mesa do coordenador, como viu os outros fazerem. As pernas bambas denunciavam a presença das três inimigas: vergonha, medo e culpa. Achou que não ia conseguir. Mesmo assim, abriu a boca. A voz enfim saiu:
-Meu nome é Ana Lúcia. Eu ... sou... al...alcoólatra.
O coro de vozes deu segurança; parecia uma rede de proteção:
-Oi, Ana Lúcia!
Sentiu que as três inimigas batiam em retirada. Depois de uma grande pausa, continuou:
-Eu não sei bem... quer dizer, é a primeira vez... ou melhor, não é a primeira vez que eu venho aqui... é a primeira vez que consigo falar... meu nome... não sei se sou eu mesma... quando acordo no dia seguinte não me lembro... quando as pessoas me contam eu não acredito... que tinha feito aquilo...
Silêncio. Com todas aquelas reticências, ninguém tentou falar, interromper, apartear, como sói acontecer em tudo que é reunião. Ana Lúcia se surpreendeu. Todos quietos olhando para ela como se estivesse fazendo revelações importantíssimas. Tomou alento:
-Das outras vezes eu fiquei ouvindo vocês, e tem muita coisa parecida... então acho que eu posso... quer dizer, acho que eu quero...
Queria mesmo era terminar a brilhante falação. Procurou ajuda pela sala. Viu a foto do Bill, e, ao lado, a tabuleta com um dos refrões : “Se você quer beber, o problema é seu; se você quer parar de beber, o problema é nosso”. Inspirou-se:
-Acho que eu quero... quer dizer, eu... quero parar de beber.
Bateu na mesa, como vira os outros fazerem, despediu-se:
-Mais vinte e quatro horas para todos!
Durante o resto da reunião mal ouviu o que diziam. Notou que às vezes se referiam a ela, se diziam felizes com a nova “irmã”, desejavam força, davam conselho.
Em sua mente, passavam cenas que devia ter contado, ou que sabia que um dia ia contar: a noite em que a polícia a parou por dirigir em zigue-zague; a briga com a família no Natal, ela cuspindo “verdades” para os pais e os irmãos (e para todos os vizinhos que quisessem ouvir); o aniversário em que “capotou” antes dos amigos chegarem, dormiu a festa toda; a quarta-feira de cinzas em que acordou com um desconhecido ao lado, na cama, sem saber o que rolara...
Quando a reunião acabou já era noitinha, mas o calorão continuava. Entrou nas Americanas para aproveitar o ar condicionado. Comprou guloseimas, como ensinaram: “o corpo vai precisar de açúcar, para substituir o álcool; nem pense em dieta agora”. Tudo o que gostava: chocolate, pão de mel, caramelos; e um livro que há muito queria ler. Ao chegar em casa, foi direto para o chuveiro; pediu perdão ao meio ambiente e deixou a água do planeta se desperdiçar sobre ela.
Só resolveu sair quando ouviu o telefone. Não atendeu. Ficou esperando, ainda enrolada numa toalha, enxugando os cabelos com outra. Deixou entrar a secretária eletrônica. Logo, a voz da Mariana, a melhor amiga:
-Ô muié! Onde estás? Assim que chegar me liga, tá? Estamos te esperando; imagina o quê: vai ter uma festaça na casa da Glorinha, lá no Recreio. Vem para cá para ir com a gente. Sabe quem vai estar na festa? O Chico! E eu soube que ele está sozinho, despachou aquela bruaca... Já se animou, né? Voa para cá, amiga! E traz o biquine, que a festa vai ser na piscina! Demais, né? Nesse calor dos infernos. Vamos refrescar legal. Por dentro e por fora. A cerva aqui está geladíssima.
Podia ouvir as risadas e a música do outro lado; já estavam se preparando. Ao lado do telefone estava o cartão que trouxera, com a oração da serenidade.
O tempo parou. Ficou suspenso, igual à mão dela sobre o fone, aguardando a decisão.

RJ, junho 2009

Nenhum comentário: