domingo, 28 de fevereiro de 2010

ONOMATOPÉIA



A idéia veio naquele papo com Ary. Estavam embolados na rede do terraço, na cobertura luxuosa de Lisa. Tinham passado o dia bebemorando os sessenta anos. Nasceram no mesmo dia, se diziam gêmeos idênticos, apesar de algumas falhas: famílias e cidades diferentes, e o pior, ele com o sexo trocado. Erros divinos, desses que os humanos vivem tendo que endireitar, aceitando ou reclamando, e que Ary listava para cobrar quando e se chegasse lá em cima, no juízo final, ou no “fim da picada”, como ele chamava.

Começaram com a cervejada na praia, brincando de bife à milanesa, rolando nas areias de Ipanema diante dos olhares de censura de senhores circunspectos, jovens yuppies e famílias com crianças e baldinhos. No almoço, regaram a feijoada com caipirosca, o que exigiu uma pequena pausa. Depois, uísque ao entardecer, aplaudindo a retirada pomposa do sol.. Cerveja de novo na roda de samba na Lapa.

Tinham chegado agora à fase do "dry martini" – de confidências e grandes sacações sobre a história da humanidade e a vida – já que Buñuel uma vez disse que era quando bebia dry martini que tinha seus insights mais brilhantes. Tudo tinha explicação, motivo. Se não sabiam inventavam, afinal não é isso que diferencia a espécie humana das outras?

Ary saiu da rede, depois de algumas tentativas desajeitadas, quase derrubando Lisa. Alisou a barriga exibindo o corpo meio balofo, pegou os copos para reabastecer:

- Temos que nos preparar para mais essa burrada divina, querida. Doze lustros! A partir de hoje somos legalmente idosos. E o cara não planejou direito, como sempre. Tudo caindo, pele, peito, pau, bunda e cabelo. O tesão não devia cair junto? Mas não, continua lá! E nós é que temos que dar um jeito. Plástica e viagra, é tudo paliativo, pô! Haja criatividade!

Quando voltou, Lisa, deitada com a cabeça nos braços cruzados atrás, abriu o coração:

- Quer saber, maninho? Tem duas coisas que eu sempre quis fazer e nunca consegui. Não quero encerrar o expediente aqui na Terra sem realizar, só não sei como. Uma é mergulhar de cabeça. Toda a vida tive que aturar essa gente que levanta os braços, se debruça, empina a bunda e salta, em mar, rio ou piscina. Que inveja! Você nem pode imaginar o que já passei, humilhação de agachar para furar a onda, ou pular de pé, às vezes até tapando o nariz!

- Houston! – exclamou Ary. We have a problem! Não tenho como resolver isso, jamais consegui também, mas não me gerava angústia. Por que você nunca me contou? Viver esse drama sozinha! Podia ter partilhado, eu podia ao menos consolar. Alegria partilhada é dupla alegria, mas dor partilhada é meia dor, querida! E a outra coisa? Algo que eu possa ajudar, please!

- A outra é mais complicada ainda. É uma relação sadô. Já curti muito em fantasia, mas nunca tive coragem na vida real. Como é que eu ia dizer pro cara “Me dá porrada”? E depois, como é que ia encarar? E se desse certo, gostasse? Ia passar o resto da vida apanhando? Só transei com gente normal, ou pelo menos que pensa que é normal. Todo esse lance de misturar sexo com afeto, amor, respeito até. Nunca deu para extravasar!

Ary saltitou de alegria:

- A-há! Essa eu tenho solução!

- Você? - Lisa se espantou. Você faria isso por mim?

- Eu, não. Deus me livre! Esse negócio de relação hetero tô fora. Me dá nojo só de pensar. Mas sei de um jeito. Olha só: como é que você acha que eu estou me virando depois da morte do Mauro? Depois de quase quatro lustros de casamento com aquele homem maravilhoso, pensei que nunca mais ia querer ninguém, ia pendurar as sapatilhas. Mas a vontade voltou, teimosa. Fazer o quê? Dar uma de bicha velha, catando homem em bar, boite? Nem pensar! Não só pelo risco, pois viver é perigoso mesmo, mas, por mais que eu tente me iludir, sei que o bofe estaria a fim é do dinheiro, prestígio, conforto. Interesse por esta carcaça velha? Difícil! Então vou direto ao ponto. Pago e os dois têm o que querem. Semana passada pesquei um na interrede, lindo, parece um daqueles Baldwin, nunca sei se é Adam, Alan ou Alec. O mais novinho. Um pitéu! Faz o que você quiser. Maior competência. E discrição. Recomendo!

- Sei não, dá um pouco de medo. Muito fora da minha linha. E tenho essa tendência compulsiva... E se vira vício? – Lisa hesitou.

- Atenção! Legalmente idosa, dear! E o que é a velhice sem vícios? Melhor morrer de medo que de tédio! Não se esqueça que o que se leva dessa vida é a pica que se leva.

Depois dessa conversa inspiradora, Lisa passou uma semana tentando decidir. Tinha posto o cartão com o número de telefone do cover de Baldwin junto ao do médico. Olhava para um e para o outro alternadamente, ponderava. Tinha que marcar o início da quimio. Isso não contara ao Ary, a ninguém. O diagnóstico recém recebido: linfoma. Não queria partilhar. Não queria assistir aos esforços do amigo para adaptar algum ditado ou provérbio que desse conta. Ou suportar os olhares de pena e medo que cercam as pessoas nessa situação.

No final da semana já tinha optado. Não seguiu a recomendação de Ary de marcar num motel. Esperou o rapaz em casa mesmo. Tomou umas três doses de uísque à cowboy, para não deixar o bom senso atrapalhar, ligou o rádio para abafar qualquer ruído.

Quando abriu a porta, viu que o garoto era mesmo uma graça, embora nem de longe um Baldwin. Espanou rápido uma idéia tipo “podia-ser-meu-neto”. Ele foi entrando desengonçado, passo ensaiado de malandro, todo blasé. Ao ouvir o que ela queria, comentou apenas:

- Nesses casos tem que ter uma palavra-chave pra parar. Dizer que não ou pedir não vale. Fui parar uma vez e a pessoa ficou pê da vida.. Era só reação instintiva.

Lisa falou a primeira palavra que lhe ocorreu:

- Onomatopéia!

- Que diabo é isso, mulher?

- Precisa saber o que é?

Ele não respondeu, deu de ombros, começou a sessão.

Lisa não soltou um gemido que não fosse de prazer, um ai que não fosse de tesão. Em nenhum momento pensou sequer na palavra-chave. Virada de um lado para o outro, penetrada de todas as formas, em posições que só vira em filme, mordida, espancada, chicoteada, nem em seus devaneios masturbatórios gozara tanto. Especialmente quando ele a amarrava, imobilizava. Volúpia de se entregar passivamente à impotência que a gente cansa de tentar combater na vida. Orgasmos pelo corpo todo, ora em seqüência, ora ao mesmo tempo. Clitóricos, anais e vaginais. Físicos, mentais e espirituais. Assombrava-se com a intensidade daquilo, a existência levada ao extremo,o apogeu dos instintos, Eros e Tanatos de mãos dadas.

O jovem garanhão tinha tudo no lugar, no tempo e na medida certos. Agilidade de felino, força de urso. Principalmente o principal, nem fino nem grosso, nem grande nem pequeno, duro o tempo todo. Um cartão postal. Quando o tempo acabou, Lisa chegou a considerar pedir uma prorrogação. Mas temeu morrer ali na mão dele, encrencar a vida do rapaz.

Esperou-o tomar banho, se vestir. Pagou o combinado. Depois que ele saiu entrou no chuveiro, levou um tempão deixando a água morna acariciar seu corpo. Passava as mãos nos hematomas, nos seios, se tocava toda, chupava os dedos molhados, gozando ainda. Desligou então o aquecedor, uma ducha fria cortou o barato, entorpeceu o corpo. Caiu na real. De que tivera medo, afinal? Podia ter experimentado antes, não tinha a menor chance de viciar. Parecia alegria de porre, que depois deixa a pessoa mais triste. No caso, um delírio orgiástico que a deixava mais insatisfeita que antes. Com um leve sabor de ressaca na boca, se deu conta de que essa de buscar prazer na dor não era de fato sua praia. Não mais. Teve certeza do próximo passo.

Vestiu um conjunto de moletom. Catou todo o lixo da casa, picou os resultados dos exames, os laudos, os cartões com os telefones, despejou tudo na lixeira do prédio. Arrumou uma pasta de documentos em cima da mesa da sala, deixou sobre ela um bilhete.

O rádio continuava ligado, uma estação que nunca tinha ouvido, uma seleção musical estapafúrdia. De repente começou um pout-pourri de trilhas de cinema. Achou graça quando entrou “Luzes da Ribalta”. Gostou da sincronia. Tentou se lembrar da versão em português, cantarolou: “Vidas que se acabam a sorrir, luzes que se apagam, nada mais”. Ou seria o contrário? Foi ao terraço, sentou no parapeito. Não tinha uma luz no céu, mas lá embaixo era uma festa. “Um rio de luzes” – pensou, apreciando o movimento dos faróis dos carros. Bateu palmas para a breguice da imagem.

Tinha que acertar de primeira. Como na vida, não tem ensaio. Levantou os braços, gritou bem alto: “ONOMATOPÉIA!” e se atirou de cabeça. Um mergulho perfeito.




RJ, outubro 2008

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