domingo, 28 de fevereiro de 2010

CIRANDA



Sarita pôs a poltrona e o corpo na posição vertical para o pouso em João Pessoa. O vôo até que não fora ruim, o serviço de bordo na classe executiva até satisfatório. Nada que compensasse, no entanto, a irritação pelo atraso no aeroporto e pelo absurdo de ter que suportar qualquer desconforto, não para a anual viagem à Europa ou aos States, mas para esse fim de mundo onde o filho viera se enfurnar. Dobrou o blaser de linho cuidadosamente, tirou o espelhinho da bolsa para retocar a maquilagem e mascarar a contrariedade – providência aliás supérflua, pois já há algum tempo qualquer expressão era devidamente apagada de seu rosto por sucessivas cirurgias, liftings e preenchimentos. Mesmo assim, julgou camuflar com rápidas pinceladas de blush o ressentimento com o último caso do marido, cobrir com uma camada de brilho nos lábios a raiva das amigas que souberam antes e não contaram, arrumar com leve escovada nas sobrancelhas os aborrecimentos com os empregados, esconder com um toque no penteado a insatisfação com o serviço do decorador.

No saguão do aeroporto viu o filho que a buscava com o olhar. Reparou a roupa modesta, amarrotada, o cabelo mal cortado, a barba por fazer. Suspirou com a lembrança das expectativas que tivera, de vê-lo no Fórum ou na ONU, juiz ou diplomata, quando acabou a faculdade de Direito e casou com uma médica também recém-formada. Nunca pensou que tomaria esse rumo, de se mandar para o interior. Provavelmente influência “dela”, que provavelmente não conseguira emprego nos grandes centros, provavelmente por incompetência..

O filho a recebeu com um sorriso largo, estendeu os braços. “Fez boa viagem, mãe?” Esquivou-se do abraço, entretendo-se com a bolsa, o blaser; respondeu o menos secamente que pôde. “Razoável, meu bem.” Estava decidida a ser paciente, não entrar em conflito ou polêmica. Já fazia três anos que a chamavam e agora que finalmente acedera ao convite ia agüentar tudo estoicamente, afinal que sacrifícios não se faz por um filho? Ignorou a sugestão de pegarem o ônibus que saía dali a meia hora. Já tinha tratado o carro. Ele pegou a mala e a acompanhou ao guichê da locadora. Sarita agradeceu mentalmente ele tê-la poupado de alguma observação sobre desperdício ou indiferença ao meio ambiente. Pegaram a estrada. Deixou que ele dirigisse mas pediu que fechasse as janelas e ligasse o ar. Lá fora a claridade era ofuscante. Depois de algumas tentativas de puxar conversa e só obter de volta monossílabos, o filho se calou, passou o resto da viagem concentrado na estrada esburacada e poeirenta. Sarita olhava a paisagem inóspita, o desenho dos cactos se esgueirando entre as pedras.

Uma semana se passou. Um século para Sarita, esgotada pelo esforço de não deixar transparecer o desgosto por tudo o que via e ouvia. A casa era rústica, mal aparelhada, desproporcional ao orgulho do casal ao exibir a horta, o jardim, o quarto que prepararam para ela: chão de cimento, sem ar condicionado, cama tosca, colchão de crina, mosquiteiro, coisas que nem imaginava ainda existissem. Os dois se esmeravam em agradá-la. Viviam rindo e se abraçando, preparavam cada refeição como se estivessem fazendo uma festa. As conversas não passavam de alguns comentários gerais; para evitar dar opinião Sarita abortava qualquer assunto, o papo não fluía. Mesmo assim às vezes escapava: “Vocês não tem empregada? A mão-de-obra aqui deve ser barata.” A nora sorria: “Carece não, Sarita, a gente dá conta da nossa bagunça.” E que bagunça! A casa vivia cheia, a porta sempre aberta, gente entrando e saindo a qualquer hora, para pedir alguma coisa ou trazer um bolo ou alguma fruta esquisita, ou mesmo para coisa nenhuma. Crianças, então, só não eram mais numerosas e assíduas que as moscas, que exigiam se cobrir tudo o tempo todo na cozinha. Apavorada com aquele entra-e-sai, Sarita mantinha a mala fechada a cadeado debaixo da cama, uma trabalheira cada vez que ia pegar ou guardar alguma coisa. Preocupava-a também o carro, estacionado em frente, imaginava como ia devolvê-lo, provavelmente avariado ou “depenado”.

Apesar do incômodo da casa, Sarita evitava sair, usava como pretexto o livro chato que o seu clube de leitura escolhera aquele mês. Deu uma ou duas voltas pela “cidade”, para lhe mostrarem satisfeitos a pracinha, o coreto, a igreja, o posto onde ela trabalhava, a escola onde ele lecionava, tudo absolutamente desinteressante. Cumprimentavam todo mundo, paravam para conversar, enquanto ela só queria desaparecer, fugir daquele calorão, daquela poeira, daqueles olhares curiosos. “São quase todos negros”, estranhou, “não esperava, aqui no sertão, e de olhos azuis, alguns?” Mal ouviu a explicação da nora, algo sobre origem de quilombo, endogamia, doença congênita dos olhos. Só atentou para o final: “Sabe o que é mais interessante? É que a padroeira da cidade é exatamente Santa Luzia, que na tradição católica é a protetora da visão. Aliás, você vai poder assistir à festa dela, é na véspera da sua viagem.” “Que bom!” , Sarita exclamou entusiasmadíssima, deixou que pensassem que era pela festa, mas pensava mesmo era na viagem de volta. Já planejava as providências ao chegar ao Rio: pelo menos uns dez dias em Búzios para a Lygia consertar os estragos na pele e no corpo, uma longa visita ao cabeleireiro, o modo como contaria a visita às amigas, omitindo os detalhes vergonhosos.

Chegou enfim a véspera da ansiada volta à “civilização”; Enquanto empurrava a mala para debaixo da cama, depois de guardar a roupa que trocara, o filho chamou:“Vamos dar um pulinho na festa, mãe”; e praticamente a arrastou para fora. Seguiu-os como uma rês a caminho do matadouro; “ o último sacrifício”, pensou. Nem reclamou quando lhe puseram na cabeça um horrendo chapéu de palha: “Ainda muito sol lá fora”, disseram, como se ela não soubesse, não estivesse encharcada de protetor solar e hidratante há dias.

Sentou-se num banquinho do bar da esquina, enquanto os dois se misturaram à pequena multidão que tomava a praça. Uma banda desafinava no coreto e todos dançavam. Tensa, sob o sol ainda causticante do final da tarde, sentia-se imunda, fustigada pelo vento que a cada lufada trazia mais poeira, com todos aqueles pés se arrastando. De repente viu o filho acenando, animado: “Vem, mãe, vai rolar uma ciranda!” Levantou-se, pesada, dirigiu-se ao meio do burburinho e logo os perdeu de vista. Atordoada com o barulho, nauseada com o cheiro de suor, foi puxada, agarrada por mãos ásperas e calejadas, à direita e à esquerda.

No auge da irritação, soltou uma das mãos, arrancou o chapéu da cabeça, jogou-o ao chão. O vento o levou para o meio da roda. Envergonhada por ter perdido o autocontrole, Sarita olhou de esguelha para a mulher que apertava sua mão do lado esquerdo. A mulher abriu um enorme sorriso de poucos dentes e, num movimento rápido, puxou o lenço que trazia à cabeça e arremessou-o para dentro da roda, junto ao chapéu. Um homem do outro lado tirou o boné e jogou também. Uma moça tirou o colar de miçangas e fez o mesmo. Um rapaz jogou as sandálias. Cada um foi jogando algo de seu, era já um monte de chapéus, lenços, colares, sandálias, cintos, bolsas, tudo no meio da roda e todos dançando em volta, girando, girando, girando.

Sarita foi de repente invadida por uma onda gigantesca, um verdadeiro tsunami varrendo o que encontrava dentro dela: irritação, desconforto, mágoas, decepções, ressentimentos, inveja, raiva, intolerância, ciúme, despeito, frustrações. O corpo se abria e expelia aquilo tudo. A pele deixava de separá-la do mundo, suas mãos se acomodavam nas dos vizinhos, viravam um prolongamento delas. A roda era toda uma coisa só, serpenteava, se contraía, se expandia, os símbolos das individualidades abandonados ali no meio. Nunca sentira aquilo antes, tentava dar nome. Não achava palavra que definisse. Estava nua, leve, ainda era ela mas agora parte de algo muito maior, como se tivesse saído do corpo ou seu corpo englobasse tudo. Descerrou os lábios, aderiu ao coro, a onda lhe vinha à boca no canto do refrão.

A dança acabou, a roda se desfez, cada um pegou suas coisas e se afastou. Sarita pegou o chapéu, encontrou o filho, voltaram para casa. Pela primeira vez notou a rede na varanda, se recostou, e ali mesmo adormeceu. Só acordou no dia seguinte, ao ouvir os primeiros movimentos na cozinha. Aspirou o cheiro forte do café e do pão saindo do forno. Descalça, juntou-se a eles, saboreou o suco de graviola, regou a macaxeira cozida com a manteiga de garrafa que nem tinha experimentado antes, tudo sob o olhar intrigado do filho. Caiu na realidade quando ele falou. “ Tá quase na hora, mãe, vou levá-la ao aeroporto.” Respondeu sorrindo: “Carece não, filho, eu dou conta de chegar lá.” Acostumado à nem sempre muito fina ironia da mãe, ele se surpreendeu quando viu que a frase não vinha acompanhada do costumeiro risinho sarcástico. Ela foi se arrumar. Na saída, pegou o chapéu na rede onde o deixara:“Vocês se incomodam se eu levar esse chapéu?” Enlaçou a nora, sussurrou-lhe um “muito obrigada” ao ouvido. Abraçou o filho com força, sentindo seu corpo musculoso, tão diferente de quando o abraçava assim, ainda bebê.

Entrou no carro, ligou o ar e fechou as janelas, na força do hábito. Na esquina viu umas crianças brincando. Abriu a janela, deu-lhes adeus, todos abanaram as mãozinhas. Desligou o ar, não fechou mais as janelas. Pôs-se a acenar para todos que passavam , a pé ou a cavalo, de jegue ou bicicleta. E eles sempre acenavam de volta. Vontade de não acabar aquela estrada, não chegar nunca ao aeroporto.

Após a decolagem, Sarita abriu a bolsa à procura da maquilagem. Viu que tinha esquecido. Reclinou a poltrona e o corpo. Simplesmente sorriu. Estranhamente feliz.


RJ. setembro 2008

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