domingo, 28 de fevereiro de 2010

E NO ENTANTO ACREDITE




Era sempre na pior hora. No meio do banho depois da caminhada matinal, por exemplo. O telefone tocava. Saía quase escorregando no chão molhado, com a toalha agarrada às pressas, e lá vinha:
- A Josefina está?
Ou quando, refestelada no sofá para assistir sua série policial favorita, ia enfim descobrir o assassino:
- Posso falar com a Josefina?
Nos momentos em que batia o lado ruim da solidão atendia correndo, na esperança de uma voz familiar ou amiga:
- Boa noite. A senhora Josefina?
Vontade de mandar a algum lugar distante, de matar ou de morrer. Mas explicava:
- Este telefone já é meu há cinco anos; por favor, não há ninguém aqui com esse nome...
Naquela tarde não deu outra. Tinha acabado de sair, atrasada como sempre, para a consulta médica, bolsa de um lado, saco com os resultados dos exames do outro. Mal fechou a porta ouviu a campainha. Pensou em não atender, mas podia ser cancelamento da consulta, vasculhou o monte de bugigangas da bolsa onde jogara a chave e abriu a porta correndo para o usual:
- Dona Josefina, por favor?
Depois da explicação de rotina, pegou o metrô. Humor estragado, quase recusou quando a mocinha viçosa levantou para ceder o lugar, não lhe deixando esquecer a idade. Sentou sem agradecer.
De repente reparou a mulher sentada a seu lado. Igualzinha a ela: mesma faixa etária, mesmo tipo de roupa, mesmo corte de cabelo, só o tom da tinta um pouco mais escuro. Veio aquela lembrança idiota do anúncio do bonde da infância: "Veja, ilustre passageiro /o belo tipo faceiro / que o senhor tem a seu lado./ E no entanto acredite..."
Para completar, a mulher levava um saco plástico do mesmo tamanho, da mesma cor, do mesmo laboratório, quiçá com os mesmos exames que ela. Sorriram. Comentaram: indo ao médico, as duas; na Praça Saenz Peña, as duas.
Na estação Catete tinham trocado informações sobre os motivos da consulta, os piripaques de cada uma. Na Glória passaram para dicas de cabeleireiro e de dietas. Na Cinelândia chegaram às profissões, uma bióloga, a outra psicóloga, ambas aposentadas. Na Uruguaiana já confidenciavam história de vida, casamento na mesma época, separação mais ou menos pelos mesmos motivos, filhos criados. E assim foram, de estação em estação, se inteirando das grandes semelhanças e das pequenas discrepâncias de suas biografias.
Quando enfim saíram do metrô, a volta à superfície pareceu o fim de um sonho. Ficaram um tempo paradas, sem querer se despedir. Já ia cada uma para seu lado quando ela chamou:
- Ei! Conversamos tanto e eu nem sei o seu nome.
- Jô. E o seu?
- Jô? Só Jô?
A outra riu:
- Não vá espalhar, na verdade é Josefina, mas todo mundo me chama de Jô. Não sei por que minha mãe fez isso comigo.
Riram muito quando ela contou suas desventuras telefônicas, até descobrirem que o número tinha mesmo sido da outra, antes da mudança para Copa, há sete anos.
Naquela noite, quando estava escovando os dentes para se deitar, o telefone tocou. Atendeu com a boca ainda espumando. Surpresa:
- Desculpe, sou eu. A Jô. Não resisti à vontade de ligar, foi legal te conhecer. Que tal tomarmos um café amanhã, está a fim?
A partir daí foi um cafezinho aqui, um cineminha ali, um jantar acolá, não desgrudavam mais. Assunto a perder de vista. Programas, compras, planos de viagens, depressões e alegrias, partilhavam tudo.
Uma noite combinaram ficar na casa dela vendo o filme que descobriram que era o preferido de ambas, Casablanca, degustando queijos e vinhos.
No final do filme, o vinho era tanto e a emoção tamanha que se abraçaram enternecidas. Começaram a se tocar, a se beijar, e logo estavam na cama, degustando uma nova maneira de amar.
Cada vez era mais difícil se separar. Em poucos meses resolveram morar juntas, Jô se mudou para a casa dela.
É com enorme prazer que agora atende sempre o telefone. Não há mais engano. Mesmo quando não é para ela, pode enfim responder, satisfeita, completa:
- Um momentinho que eu vou chamar.




RJ, outubro 2009

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