domingo, 28 de fevereiro de 2010

TITCHA
A vida de Raquel parecia tirada de um manual. Tudo como deve ser. Infância alegre e despreocupada, cercada de afeto e cuidados. Boa filha, educada e obediente. Boa aluna, inteligente e aplicada. Conheceu David desde criança, as famílias muito amigas freqüentavam a mesma sinagoga, o mesmo clube, iam às mesmas festas e eventos, faziam as mesmas viagens. O coleguinha virou namorado, noivo, marido. A festa de casamento, logo após o mestrado, foi uma confraternização geral. Depois saíram para o doutorado na Alemanha, ele em Física, ela em Filosofia.

Lecionavam agora na UNICAMP. Moravam numa bela casa na Cidade Universitária, alugada, enquanto aguardam a venda do apê do Rio para construir a sua, no terreno que compraram, e aí pensar em ter dois, talvez três filhos. Um quotidiano tranqüilo: acordar cedo, malhar um pouco no pequeno ginásio que montaram no pavilhão ao lado da piscina, dar um mergulho, caminhar para a Universidade, voltar para o almoço, ela preparando o prato principal, ele inventando saladas, retornar ao trabalho e, no final da tarde, pegar um filme ou sair para jantar, ler ou estudar um pouco e dormir, às vezes transar. Nos fins de semana, teatro ou concerto, jantar ou churrasco com os colegas de Departamento, de um ou do outro.

Bonita, Raquel dispensava vaidades. Os cabelos crespos, negros, contrastando com a pele muito clara, usava-os presos num coque displicente. Sempre bem arrumada, nem modernosa nem antiquada. Elegante, sóbria. Calça comprida ou saia midi, blusas de cambraia, linho ou seda, tudo em tons pastéis, preto, bege ou cinza.

Naquele semestre, Raquel começou a primeira aula do jeito habitual: pediu que cada aluno se apresentasse e relatasse sucintamente seus objetivos com o curso e como ele se encaixava no seu plano de estudos. Distribuiu então o programa para iniciar sua exposição de conteúdo, metodologia, critérios de avaliação. Foi interrompida pelo barulho da porta aberta de chofre por uma retardatária.

- Desculpe, gente, custei a achar – pediu, com as mãos postas como em oração.

Coloriu a sala toda. A face ainda avermelhada da corrida, os cabelos castanhos dourados caindo em desalinho sobre os ombros, uma mecha azul no meio, argola de madeira numa orelha, top grená cheio de brilhos e fitinhas, difícil saber como cabia tanto em tão pouco espaço, calça verde oliva manchada, amarrada na altura dos quadris por um cadarço, deixando o umbigo exibir o piercing e a tatuagem esquisita, tênis All-Star prateado, sacola de pano amarelo coberta de broches e adesivos.

Raquel levou um tempo para conseguir retomar a fala e a atenção dos alunos do sexo masculino. No final da aula, chamou-a. Não via seu nome na lista.

- É o seguinte, Titcha, posso te chamar assim? Gosto de estrupiar o inglês como os gringos fazem com nossa língua. Sou de outro curso, de Artes Cênicas. – esticou o corpo com um braço estendido em direção à porta, como se fosse puxar o prédio do Instituto de Artes até ali para provar. Soube de ti, do teu curso, queria fazer de ouvinte.

Raquel hesitou, ponderou. Ela não era da área, podia ter dificuldade de acompanhar, mas a turma não estava cheia. Cedeu. Período de experiência. Em um mês reavaliava.

- Obrigada, Titcha, vou ser tua melhor aluna. Adoro Filosofia! - Abraçou a si mesma. A música do sotaque gaúcho era pontuada o tempo todo por gestos. Era como se falasse com o corpo todo.

Tornou-se mesmo a melhor aluna. Brilhante, intuitiva. Questionava tudo. Tirava das leituras coisas que nem Raquel havia pensado. A aula começava quando ela chegava. Não andava, deslizava, como aquelas bailarinas russas. Raquel ia decifrando sua linguagem corporal. Para fazer uma pergunta, sentava-se sobre uma das pernas, balançando a outra, impaciente. Quando se empolgava com alguma idéia, punha os pés no assento, abraçando os joelhos junto ao corpo. Se discordava, dizia “não” com um braço à frente, acenando adeus com a mão aberta.

A conversa depois da aula, inaugurada no primeiro dia, virou rotina. Enquanto os outros alunos saíam, ela se acercava da mesa de Raquel, às vezes sentava em cima. Raquel já se demorava, arrumando livros e papéis, na expectativa. Tinha sempre um comentário sobre a aula, primeiro, depois sobre Raquel.

- Muito boa a aula hoje, Titcha. Mas me diz: por que tu prende o cabelo? Tão cacheado, ficava lindo solto. O rosto é o quadro, o cabelo a moldura. Não gosto de quadro sem moldura. – agitou os cabelos de um lado para o outro.

O que mais intrigava Raquel mesmo era o cheiro. Tentava definir. Não era perfume, que ela obviamente não usava. Era dela. Cheiro de flor, mas não de uma flor específica. Uma flor genérica. Cheiro da idéia de flor.

- Tinha achado pesado o texto de hoje,Titcha, com a discussão entendi melhor. Tá abafado hoje, né? Por que tu fecha a blusa até em cima? Eu acho importante manter o colo exposto, aberto para receber o que vier. A pior invenção do mundo foi a gravata, matou a sensibilidade dos homens. – com o queixo levantado, deslizou a mão do pescoço pelo colo, quase chegando aos seios.

Nesse dia estava com um vestido de crochê, cor de barbante. Quando se virou para sair, Raquel não conseguiu desgrudar os olhos das costas nuas, com apenas algumas tirinhas coloridas se cruzando atrás. Nunca usava nada por baixo. Dava para ver a ponta de outra tatuagem, parecida com a do umbigo, quase no rego das nádegas.

- Genial o paralelo que tu fez com a mitologia. Arrasou. Sabe? Eu queria ter o olho como o teu. Azul. Profundo. Merecia um realce. Nem precisa delineador, só o lápis. Assim, ó. – Fechou os olhos e aproximou o rosto para mostrar. A boca entreaberta, tão perto que Raquel teve que morder os lábios para contê-los.

Normalmente avessa a shoppings, Raquel começou a freqüentar um, esqueceu as butiques chiques do Cambuí. Comprava saias mais curtas, vestidos e blusas de cores vivas, decotadas. E cosméticos: passou a escolher com mais apuro batom, rímel, lápis, blush, delineador. Diminuiu o exercício matinal para ficar mais tempo se arrumando, escovando os cabelos que agora deixava livres, se olhando no espelho. David apreciava as mudanças. A mulher estava mais solta. Principalmente na cama. Um fogo que não conhecia. Tomava a iniciativa, queria sempre mais. O que não suspeitava é que quando transavam e Raquel fechava os olhos era a outra que ela abraçava, apertava forte para conter seus rodopios e trejeitos, lambia as tatuagens e piercings, beijava, tocava e possuía seu corpo inteiro.

Um dia não apareceu. A aula parecia se arrastar. Os alunos entorpecidos. Raquel vigiava a porta, ouvia sua própria voz monótona como se recitasse uma ladainha. Arranjou um pretexto e encerrou mais cedo. Não foi direto para casa. Deu uma volta para passar pela rua onde ficava sua “republiqueta”, como ela chamava a casa que dividia com algumas colegas.

Da esquina a viu com outra menina, sentadas na grama recostadas numa árvore e uma na outra, falando, rindo, tomando sorvete, de shortinho e camiseta. Se escondeu atrás da guarita do segurança, comprimindo a pasta contra o peito, pra não saber se a dor era da pressão ou do ciúme.

Na aula seguinte ela chegou mais cedo, com uma maçã na mão estendida. Raquel não pegou. Deixou que pusesse na mesa. Só perguntou por quê não viera na aula passada. Queria conhecer o gesto da mentira.

- Problemas em casa. – Coçou a ponta do nariz com o polegar e o indicador. Não gosta de maçã, Titcha? É da feira da pracinha. Aliás, nunca te vi lá, mas também vou quase no final, gosto de acordar tarde no sábado.

Raquel passou a ir à feirinha do sábado. Só que bem cedo, para não encontrá-la. Bastava-lhe saber que depois ela andaria pelo mesmo lugar, talvez tocaria as mesmas frutas.

Final do semestre. Ùltima aula. Raquel propôs que os alunos redigissem sua avaliação, comparando as expectativas do início com o resultado. Esperava ansiosa que acabassem para contar-lhe a novidade: que daria Filosofia e Arte no próximo semestre, que o Departamento ia oferecer a disciplina como eletiva para o curso dela (só não diria que a seu pedido), que ela poderia se matricular regularmente. Antevia sua alegria, sua excitação

Quando todos saíram, ela se debruçou sobre Raquel. Falou primeiro:

- Adivinha o quê, Titcha: vou pra França! Minha irmã vai fazer o doutorado lá, perguntou se quero ir, ajudar com a guria.

Raquel tentava achar o chão com os pés, sob a mesa.

- Que guria? – balbuciou.

- Minha sobrinha, filha dela. Eu já sou titia, não pareço? – Deu um giro completo com o corpo, braços abertos. Como se tias vivessem rodopiando em passarelas.

- Quando? – Raquel quase gaguejou.

- Quando eu virei tia? Ou quando eu vou pra França? Daqui a um mês, Titcha.

- Por quê? – Raquel não conseguiu evitar.

Ela se aproximou mais. Endireitou o corpo, se retesou, apagou o sorriso brejeiro. Como se tivesse virado mulher, de repente. Pela primeira vez falou seu nome:

- Na verdade ainda não decidi, Raquel. Queria tua opinião. É em Montpellier, tem um curso de Teatro ótimo, podia ser bom. Acho que aqui não posso ter o que mais quero, melhor me afastar. Não é assim que deve ser, Raquel? Mas se tu disser que não, eu não vou.

Raquel tentava se recompor. Procurava palavras:

- Pode ser uma boa idéia. Experiência. Sempre pode voltar se não gostar. Bom para aprimorar o Francês, também.

Baixou a cabeça e fingiu se concentrar nas anotações sobre a mesa, passar os conceitos finais para a caderneta, folhear as avaliações dos alunos. Quando levantou os olhos, ela não estava mais lá. Só o cheiro.

Raquel inspirou profundamente. Recolheu suas coisas, prendeu os cabelos com um lápis e saiu. Lá fora, sentiu frio, fechou a blusa até o pescoço, levantou a gola. Na volta para casa, teve que apressar o passo. Tinha escurecido de repente, parecia que ia cair um toró. Estava tudo cinza.


RJ, agosto 2008

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