domingo, 28 de fevereiro de 2010

ATROPELOS DA VIDA



Zé Carlos já está postado à porta do quarto, caneca na mão. Sábado, constato, pelo bermudão que tenta conter a barriga saliente. O homem é um calendário ambulante: terno durante a semana, pela gravata sei o dia, roupa esporte fino para o almoço com a mãe no domingo.

- Acordou, querida? Quer um café? As crianças querem ir para a piscina no Jockey. Vamos?

Me desvencilho do sorrisinho obsequioso na cara redonda, do ar satisfeito de quem está prestes a ganhar a medalha de marido e pai do ano. Procuro na bagunça da cabeça qual foi a desculpa de ontem: “esticada” com o pessoal da academia, que uma ia viajar.

- Vai indo, encontro vocês depois, acho que passei um pouco da conta ontem.

A porta fecha atrás deles, respiro aliviada. Tinha sido tão bom ontem, há tempos rolava aquele clima com o professor de pilates, cada vez que ele vinha corrigir uma postura as mãos demoravam mais, eu já pronta para a cantada barata:”Que tal alongar um pouco mais depois?”

Fomos no meu carro, para um motel na Dutra. Perdi a conta das horas e dos gozos, delícia sentir sobre mim aquele corpo sarado, a pele lisa e elástica, segurar aquela bunda durinha e bem torneada. Uma das melhores das transas a que eu recorro de vez em quando para variar do sexo insosso com o Zé, hoje limitado a umas trepadas eventuais, meio que para “cumprir tabela”. Meu jeito de manter a estabilidade do casamento, que, afinal, não pode suprir tudo.

O programa teria sido perfeito, não fosse o incidente na volta. Logo na via de acesso à Dutra, um baque, um solavanco. Já imaginava a explicação se tivesse algum dano na lataria. O professor se alarmou:

- Pára, pára! Acho que atropelamos alguém!

- Nem pensar! Deve ter sido uma pedra, no máximo um cachorro, não posso parar aqui, imagine se alguém me vê!

Mas ele não se acalmava, olhava no retrovisor e depois para mim, aquele olhar indignado de jovem que ainda se revolta com as injustiças do mundo: “Deixa eu saltar!”

Deixei-o lá. Fazer o quê? Não deve ter acontecido nada. Folheio o jornal: nada. Também não sei se um atropelamento em Nova Iguaçu mereceria notícia. Melhor esquecer. Mudar de academia, com certeza. Tocar a vida.

Preciso me aprumar, ir encontrar o maridão e as crianças. Outro café, uma ducha. Vou a pé, a caminhada ajuda a acabar de acordar. Ontem foi ontem. Acabou.

Na esquina, um rebuliço: a moça dando ré para sair da vaga esbarrou numa velhinha, que perdeu o equilíbrio. Sai do carro, levanta a velhinha, pede desculpas, quer levá-la a algum lugar, a velhinha diz que não foi nada, só arranhão no joelho, a outra insiste. Tudo o que eu não fiz. E o que eu fiz? Não vou saber nunca.

Tento passar pelo grupinho de curiosos que já se formou para assistir a cena. Só quero esquecer. “Dá licença?”

RJ, novembro 2008

Nenhum comentário: