domingo, 28 de fevereiro de 2010

RESSURREIÇÃO




Recobrou a consciência aos poucos. Mesmo sem abrir os olhos, percebeu, pelos sons e cheiros, que estava no hospital. Por um breve momento, teve a ilusão de que morrera e de que talvez tivesse voltado em outro corpo, como uma de suas patroas, dona Nininha, dizia que acontece. Mas não. Começou a lembrar de tudo, viu que infelizmente ainda era ela mesma.

Já devia ser domingo. Domingo de Páscoa. Tinha acontecido na véspera. Voltava da faxina do sábado, na casa da dona Zilda, feliz porque ganhara um ovo grande, ia fazer uma surpresa para o filho. Ao pé do morro, enquanto tomava fôlego para a subida, reparou o rapaz elegante entrar com pressa no carrão de luxo. Parecia um ator da novela. "O que estaria fazendo aqui?" - pensou. Arrancou numa disparada, quase passou por cima dela. Não a viu, nem parou para socorrer, quando ela caiu. Não sabe quanto tempo ficou ali: alguém deve ter achado e levado para o hospital.

Ouviu a voz da filha lá fora, tentando entrar. Uma voz autoritária dizia que não podia, só na hora da visita, só se tivesse mais de 65. Bem que parecia, embora não passasse dos 40. A vida toda lhe veio à memória, os episódios mais importantes. O casamento, lá no interior, ainda menina; o dia em que o marido lhe disse para arrumar as coisas, que iam para o Sul, “sair dessa miséria”, sem pedir opinião, como sempre, ela já buchuda. A chegada ao Rio, o barraco, tão difícil de manter decente. Os partos: Josué, Mateus, que morreu antes de completar um ano, e Madalena. Essa , quando nasceu, ela já estava sozinha, o homem tinha sumido no mundo.

Então era isso: ia morrer de novo. Esse negócio de a vida passar como num filme é o que dona Nininha também dizia que acontece quando se morre. Não ficou triste, sentiu até um certo alívio. Só lamentou a tristeza que causaria aos filhos, mas sabia que ia passar logo, morte de pai não é como a de filho, que fere para sempre.

Pensou neles. Tanto sacrifício fizera para criar e deram naquilo: Madalena mal fez 16, nem casou e já está de barriga. Perguntara de quem, e tivera que ouvir : “Acho que é do Denilson”. Queria poder aconselhar que tirasse, mas era pecado mortal; calara-se. Bastava a dor daquele “acho”. Afinal, tem gente que diz que onde comem dois comem três, o que não é bem verdade... Josué largou a escola cedo, só queria saber de bola e boteco. Ano passado, fez a besteira maior: um dia na praia, com os amigos, viu a bolsa da mulher “dando mole”, como explicou, pegaram ele. Por vinte reais! Provavelmente era dinheiro para farrear; disse que era para lhe comprar o presente do dia das mães. Não o reconheceu quando o viu na delegacia, a cara inchada, deformada de tanto apanhar. Os guardas disseram que foi o povo na praia; que queriam linchar. Fingiu que acreditou. E as visitas, agora semanais, que tortura! Passar pela revista, humilhação, vergonha. Sua vida: de segunda a sábado limpando sujeira dos outros, domingo a viagem a Bangu...

Conseguiu levantar a mão direita, ainda presa no tubo do soro, levou-a ao pescoço. Com as forças que lhe restavam, apertou o crucifixo que a mãe lhe dera na despedida, há tanto tempo: “pra te proteger, filha”, dissera. Vontade de encontrar a mãe de novo, reclamar: “ protegeu não, mãinha”. Mas achou que enfim entendia o homem na cruz: teve a chance de voltar mas não quis ficar. Fez o mesmo. Nem esperou o terceiro dia. Se entregou. Subiu ao céu.


RJ, abril 2009

Um comentário:

Madu Braga disse...

São todos muito bons, mas este é sensacional!